O drama de consciência do servidor da Nação

O PENSAMENTO DO PROFESSOR EUGÊNIO GUDIN

 

Artigo publicado no jornal "O Globo" do Rio de Janeiro, edição de 16/05/77.

 

O drama de consciência do servidor da Nação

 

A burocracia é a organização encarregada de fazer funcionar o mecanismo da administração do Estado. Ao tempo em que o Estado tinha caráter primitivo ou elementar, o aparelho burocrático funcionava sem maiores delongas ou complicações. Mas à medida que a máquina do Estado foi crescendo, a burocracia foi deixando de ter uma função simplesmente adjetiva para tomar corpo e constituir, ela própria, um órgão semi-autônomo, capaz de delongar, distorcer, quando não modificar e até revogar as ordens vindas de cima.

 

A burocracia passou assim a adquirir um momento de inércia (na linguagem da mecânica racional), que a tornou mais complexa, e menos ágil. E a burocracia só cresce em proporção maior que o Estado a que serve, multiplicando-se e transformando-se em órgão de gerência.

 

Esta capacidade de hipertrofia da burocracia tem sido denominada "Lei de Parkinson", pelo nome do autor que tão bem descreveu sua natureza, seu mecanismo e seu poder de multiplicação.

 

Pode surgir aí para os expoentes da burocracia a questão de saber se seu dever consiste em servir o Governo em quaisquer circunstâncias a qualquer regime, o que, para o servidor, é a solução mais conveniente, mais cômoda, e mais proveitosa, ou se ela é, antes de tudo e perante sua consciência, o servidor da Nação, membro de uma organização que ao colaborar com um regime, que ela reputa funesto, está ajudando tal regime a se enraizar.

 

É um sério problema de consciência para um homem honrado e patriota, que se encontra em posição importante e que só tem por guia a paixão de seu dever, qual o de saber até que ponto ele deve servir um Governo objeto de repulsa da Nação.

 

Se for verdade que abandonando o posto, ele deixa o campo livre aos destruidores, em vez de procurar limitar o mal, também é verdade que se submetendo a suas ordens, mais do que desejaria, ele acabará por se degradar sem nada ter impedido.

 

E infelizmente essa última hipótese – a de dobrar a serviz – aqui como alhures – a mais geralmente seguida. Há que pensar na carreira, há que pensar na família, nos honorários, nos proventos, etc, etc. Para os que assim se curvam, o sentido da palavra servir, fica muito próximo do de servil!

 

Mas também há – hélas – aqueles imbuídos de patriotismo, dispostos a assumir na vida civil os riscos que os soldados assumem nas pelejas da guerra.

 

Muito depende da atitude que assumem as principais instituições do país: Forças Armadas, administração, magistratura, universidades, instituições onde existe um "esprit de corps", capaz de resistir às infiltrações.

 

Para um homem de honra, sejam quais forem os deveres que tem para com o seu país, ele os tem ainda maiores para com sua dignidade humana e sua honradez. Ele não pode aceitar obrigações em que sua alma se avilte. E conquanto assim procedendo possa parecer que ele está pensando em si, ele está na realidade cumprindo um dever primordial para com a comunidade de que faz parte. Pois que se é verdade que uma nação precisa de funcionários diligentes, ela precisa mais ainda de homens que mantenham, acima de tudo, a nobreza que alimentará a honra e o porvir dessa nação.

 

Aqueles que a servem, servindo o Estado, não lhe são mais preciosos do que os que a defendem fora dela. Já que uma grande Nação se escuda, antes de tudo, no caráter de seus filhos.

 

O Brasil teve, sob esse aspecto, um exemplo que o enalteceu em sua história - o desse Grande Soldado-Civil que foi o General Castello Branco. Quando, como chefe do Estado-Maior, ele se sentia no dever de alertar os corpos de tropa para as nuvens de tempestades que se vinham formando no horizonte brasileiro, não havia em qualquer de suas manifestações a mais leve insinuação de formação de um governo militar e muito menos de sua candidatura.

 

Seu pensamento se fixava na salvação da Pátria em caso de conflito. Levado ao poder por propostas de três influentes governadores civis, nada solicitou. Aceitou a missão para a qual o haviam convocado.

 

Sofreu, como se sabe, as cruéis agruras oriundas das ambições dos que rondavam sua sucessão e procuravam assegurar-se dessa conquista.

 

Sofreu da impopularidade oriunda – forçosamente – de um governo que é obrigado a reduzir empreendimentos e cortar despesas.

 

Mas onde mostrou seu grande valor de brasileiro e sua alma de escol foi quando recusou, peremptoriamente, a extensão de seu mandato (mesmo quando poderosos argumentos militassem por essa solução), recorrendo à célebre máxima que "de insubstituíveis estão cheios os cemitérios" Mas na realidade com o pensamento na gloriosa tradição do Brasil, sobretudo de suas Forças Armadas, de que elas velam pela paz e a prosperidade do País, mas não ambicionam o poder político.

 

Essa tradição – que destacava o Brasil dos demais países da América Latina – Castello Branco queria mantê-la, a qualquer preço, para a honra de sua Pátria.

 

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