PROJETO HISTÓRIA ORAL DO EXÉRCITO NA REVOLUÇÃO DE 1964

Sáb, 27 de Agosto de 2011
Seção:
Categoria: 1964

Entrevistado: Coronel de Artilharia Reformado Adalto Luiz Lupi Barreiros

 

Natural da Cidade de Itu – Estado de São Paulo.

Turma de 1959 da Academia Militar das Agulhas Negras, quando foi declarado Aspirante-a-Oficial da Arma de Artilharia.

Possui todos os cursos regulares do Exército e mais os seguintes: Básico Pára-Quedista, Mestre de Salto, Transporte Aéreo, Salto Livre, Comandos e Precursor Pára-quedista.

Em 1964, era 1o Tenente no Grupo de Obuses Aeroterrestre do então Núcleo da Divisão Aeroterrestre (hoje Brigada de Infantaria Pára-quedista).

Foi Subchefe da Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República do Governo Geisel.

Na área civil, é formado em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de MS e possui formação especializada nas áreas de informática e economia.

 

 

Entrevista realizada em 08 de junho de 2004.

 

Que fatos o senhor gostaria de abordar sobre os pródromos da Revolução de 31 de Março de 1964, sua eclosão e suas conseqüências?

A ideologia reduzida a duas vertentes clássicas – comunismo e capitalismo ou totalitarismo e democracia, dependendo de quem e como interpreta a projeção dos fatos históricos sobre o nosso País, a elas referentes durante o século XX, é a fonte primária das lutas políticas entre os brasileiros.

É ela, portanto, que colocou os brasileiros a serviço de uma ou outra vertente e nos causou tantas desgraças históricas, como também nos sujeitou a interesses externos das potências centrais tutoras dessas vertentes, nesse período. Ela obstaculizou e manipulou um nacionalismo autêntico – a única ideologia que poderia nos orientar em um projeto autóctone de nação soberana. Os pródromos de 1964 nada mais foram do que uma seqüência de etapas dessa tragédia que até hoje nos acompanha, apesar de todas as transformações que ocorreram no mundo. Poderíamos dizer que fomos vítimas de dois MCI – o movimento comunista internacional e o capitalista internacional. Continuamos na mesma trilha e sob os mesmos ciclos internacionalistas.

 

O senhor poderia nos dizer algo acerca do panorama político brasileiro, anterior a 31 de Março de 1964 e o que se passava no meio militar?

O panorama político imediatamente antecedente a 1964 é o resultado natural do que afirmamos acima na primeira questão. As forças políticas eram o resultado de 50 anos de confrontos e formação de elites políticas entre essas vertentes. Importamos ideologia comunista e projeções internacionais de interesses capitalistas. Dou exemplos marcantes que comprovam isso. A vinda de imigrantes europeus para o nosso País, em face das condições de trabalho em seus países, nas condições deixadas pela 2a revolução industrial e pelo sistema capitalista que dela emergiu, bem como a influência de intelectuais que haviam aderido aos dogmas da revolução bolchevista, foram responsáveis pela importação do comunismo. Essas idéias permearam a industrialização nascente nos centros urbanos do país e as relações de trabalho no campo, para onde parte daqueles contingentes impregnaram a força de trabalho. Por outro lado, as oligarquias nacionais emergidas da estrutura econômica rural e os novos empreendimentos surgidos com aquela industrialização forneceram os meios e o combustível para constituição de uma elite política que representava, quase que exclusivamente, seus interesses econômicos. Assim, reproduzimos aqui um espelho do que ocorria no mundo.

Os interesses econômicos que não eram muito diferentes dos de hoje, exceto quanto aos intensos avanços tecnológicos nos países centrais, reabasteciam esse quadro, primeiro no interregno das duas grandes guerras, com a depressão. Depois com o nazi-fascismo, na primeira metade do século XX. Ainda, depois da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da bipolaridade de poder, decorrente da "guerra fria", quando essa polarização praticamente dominou a vida nacional. Os primeiros grandes confrontos ocorridos no Brasil entre o capital e o trabalho predominaram naquele quadro durante a grande depressão, com nítida origem ideológica. A expansão do movimento comunista para a área política se deu como reflexo sucessivo daqueles acontecimentos. Os meios intelectuais brasileiros contribuíram muito com isso.

Por outro lado, um exemplo pouco examinado de que os parâmetros e a dogmática capitalistas mudaram muito pouco, se verifica numa evidência de nossa história. As exigências estrangeiras ao governo Bernardes, relativas à dívidas externas do Brasil, por exemplo, em plena revolução tenentista que se insurgia com as práticas políticas e econômicas vigentes no País, sobre entrega de áreas da Amazônia, pagamento de dívidas externas, abertura ao capital externo, no sistema financeiro, como a privatização do Banco do Brasil, concessão de ferrovias etc., eram absolutamente iguais às que dominaram os governos após a Revolução de 1964. Foram permanentes pressões mesmo antes e durante esse período e acabaram abrindo caminho, com extremo ímpeto e amplitude na década de 1990 e nos primeiros anos deste século, com a globalização.

Portanto, a história nos prova com clareza mediana, o que afirmamos sobre o contexto político que antecedeu 1964. Orbitamos entre essas áreas de influência e geramos internamente todas as condições para confrontos revolucionários, através dos métodos e costumes políticos decorrentes de nossa herança histórica. Ambas as vertentes estavam não só dispostas, mas aptas a rupturas no processo constitucional de organização do Estado Brasileiro. No meio militar, essas vertentes se reproduziram, embora de forma difusa, como não podia deixar de ser, uma vez que as Forças Armadas são oriundas do povo, em nosso País. Embora sendo minoria no meio militar, a vertente comunista investiu, como já o fizera antes, contra pilares e princípios organizacionais e sociológicos da Instituição Militar, na busca de garantir a conquista do poder político. Talvez, esse tenha sido o embrião mais decisivo para a ruptura de 1964.

Mas esta ruptura foi basicamente uma reincidência da postura histórica moderadora daquela Instituição, traduzindo a vontade majoritária do povo.

A cooptação entre o meio militar e o povo, através da classe política, com gênese na nossa herança histórica e cultural, em ambas as vertentes, produziu não só as causas imediatas como as conseqüências dessa confrontação, cujo início pode ser identificado com o levante comunista de 1935. As causas remotas antecedem a esse movimento de 1935.

 

Qual era, de modo geral, a posição da Igreja, com relação ao governo deposto em 1964?

A posição da Igreja era majoritariamente contra o governo deposto. Entretanto, nela também, pelas mesmas razões que se identificavam adeptos dessas vertentes nas demais instituições nacionais, havia não só representantes, como órgãos da Igreja e organismos a ela vinculados, comprometidos com a vertente comunista, ainda que a doutrina social da Igreja fosse antagônica a ela. Todas as Encíclicas que fundamentam e traduzem aquela doutrina deixam esse antagonismo em evidência. Apesar disso, havia segmentos da Igreja simpáticos àquela vertente. Como há até hoje, infelizmente! Essas correntes (ou alas) usam princípios da doutrina social da Igreja para desafiar a validade e justificar a ruptura de princípios constitucionais, mesclando marxismo com ensinamento cristão, em formas absolutamente ineficazes de transformar a sociedade brasileira, dela eliminando as profundas mazelas e diferenças sociais que nela persistem, por inépcia da elite nacional.

 

Quais os principais acontecimentos, a seu ver, que foram determinantes para o desencadeamento da Revolução, no dia 31 de março de 1964?

A postura e atos do Governo em face dos dispositivos constitucionais. Os apoios e objetivos políticos das correntes em confronto. Entre esses fatos foram determinantes – o comício da Central do Brasil pelas Reformas de Base e a Assembléia do Automóvel Clube do Brasil. Nesses episódios, um propondo abertamente a subversão da estrutura constitucional e outro envolvendo e atingindo diretamente a estrutura militar, ficaram evidentes para o povo e para as Forças Armadas duas coisas: Primeiro – o desrespeito do Presidente da República pelo arcabouço constitucional que organizava juridicamente o Estado Brasileiro. Segundo – a ruptura aberta da disciplina e da hierarquia nas Forças Armadas, com o que a ordem jurídica constitucional estaria definitivamente ameaçada. A ordem pública seria destruída como conseqüência. Uma revolução de natureza marxista-leninista estava em marcha, em todos os seus ângulos e com todas as suas variáveis.

 

Qual o significado da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, qualificada de movimento reacionário pelos opositores da Revolução?

Este, como outros eventos, traduzia a capacidade de articulação das forças não comunistas em todas as suas variáveis e matizes possíveis. Como foi um movimento de massa, envolvendo grandes parcelas da população e centenas de organizações da estrutura social brasileira, que foram se sucedendo, por manifestações na imprensa, em atos públicos e em conspirações de ambas as vertentes, acabou sendo um sinal claro de que a ruptura constitucional seria inevitável e que o confronto caminharia para uma intervenção política das Forças Armadas. Mas, é necessário admitir e ressaltar que aquele evento – a marcha – não foi um movimento popular espontâneo, oriundo e com base em um direito natural – o direito à rebelião inerente ao povo, em face da sua realidade concreta que num determinado momento caracteriza a sua história. Nem foi um evento único e nem decisivo naquele contexto. Da mesma forma que não o foi o movimento das diretas, de sentido reverso, alguns anos depois, sedimentando o fim do período do chamado "regime militar".

 

Acha o senhor que as Forças Armadas, particularmente o Exército, foram intérpretes da vontade nacional, quando foi deflagrada a Revolução de 31 de Março de 1964?

Com exceções inexpressivas e de projeção histórica sem relevância marcante, de um modo geral, sempre as Forças Armadas reproduziram, motivadas por objetivos organizacionais e/ou institucionais, a vontade nacional dominante, ao longo de nossa história militar e política. A partir da estruturação do Exército, em Guararapes, sempre o Exército foi um intérprete dessa vontade, principalmente nos movimentos de pacificação. Em 1964, seguramente, a intervenção militar traduziu a vontade majoritária do povo brasileiro, naquelas circunstâncias.

 

Que fatos o senhor gostaria de pinçar da Revolução de 31 de Março na Brigada Pára-quedista, onde servia nos pródromos e na eclosão daquele Movimento?

Comecemos pelos pródromos. A tropa aeroterrestre é de natureza especial, possui vínculos e padrões internos muito característicos. Destaco a operacionalidade, o profissionalismo, o ímpeto e, para melhor entendimento dos efeitos da ideologia sobre o meio militar, o espírito de corpo, a camaradagem e uma espécie de orgulho pessoal de cada um de seus integrantes, como se fosse um galardão. Enfim, são bons soldados, entre os melhores que um Exército pode ter. Este clima e o ambiente altamente salutar à profissão das armas e à atividade-fim daquela tropa, sofria, lamentavelmente, as dissensões germinadas pela ideologia comunista. Companheiros íntimos foram arrastados neste confronto, por milhares de fatos que começavam nas formulações que surgiam do acompanhamento de fatos do mundo político. Uns acreditavam nas razões e argumentos deste ou daquele sistema. Uns defendiam atos de governo, enquanto outros percebiam os riscos daqueles mesmos atos. E das longas e inúmeras discussões, passamos aos fatos. Havia militares que já integravam células comunistas, assim como oficiais que apoiavam o governo que, recentemente, emergira do plebiscito presidencialista.

Havia, entre eles, os que cooptavam abertamente os interesses desse governo, inclusive intermediando benesses, como financiamentos de bancos estatais para aquisição de bens ou favorecimentos funcionais ou com permanente discurso de defesa de seus métodos e de seus atos. Como foi notório naquela época, havia uma infiltração ideológica nas Forças Armadas. Na Brigada, não foi exceção. À medida que o confronto entre as forças políticas foi se agravando, passou-se a viver um verdadeiro caos nos quartéis. Para se ter uma idéia aonde isso chegou, as rotinas mais elementares da atividade diária nos quartéis, passou a ser questionada em função da opção política, que um ou outro militar viesse a manifestar. De determinados oficiais, por serem considerados "contra", o cumprimento de ordem era orquestrado e dificultado. Para estes, verdadeiras "armadilhas" funcionais eram montadas, diuturnamente, pelos seus "oponentes políticos", de forma a lhes criar dificuldades, descrédito, e até mesmo problemas disciplinares.

A atividade aeroterrestre dessa tropa poderia levar isso à graves eventos e conseqüências, pois ali o risco de vida é diário e permanente.

Nesse clima é que assumiu o comando da minha Unidade o Coronel Francisco Boaventura Cavalcanti Junior, outro exemplo marcante de como uma espécie de vampirismo autofágico acabou dominando o ambiente e vitimando muitas personalidades, expoentes do esforço revolucionário de 1964. Este oficial acabou sendo cassado, embora fosse um revolucionário autêntico pró 1964, de primeira hora, além de ser um oficial de competência acima da média. E o que é mais complicado, com a assinatura do próprio irmão que era Ministro, no ato de governo que o cassou.

Durante esse período há um fato, também marcante, que prova a afirmação e confirma o que será abordado, mais à frente, sobre os efeitos da ideologia nos quartéis. Trata-se do que ficou conhecido como episódio Lacerda. Vou me limitar aos fatos, para ser fiel aos acontecimentos e evitar conceitos e opiniões subjetivas.

Assim resumo os fatos desse episódio:

Todo o país acompanhava o confronto político entre o Governo Federal e o Governador Lacerda. Não era novidade e era de ampla repercussão nacional. Chegava a extremos orais que atingiam até mesmo a dignidade dos cargos. Nisto tudo, o episódio do suicídio do Presidente Vargas, dez anos atrás, ainda repercutia e acirrava os ódios políticos e pessoais.

À noite, por volta das 23h30min de um determinado dia que todos identificam, chegou ao aquartelamento o Coronel Francisco Boaventura – Comandante do Grupo. Apresentava uma fisionomia cerrada, demonstrando grande preocupação. Dirigiu-se a seu gabinete e passou a realizar algumas ligações telefônicas.

Pouco depois, chegou ao quartel o 1o Tenente Wilson, que vinha da casa da namorada, segundo declarações dele a mim e dizendo que iria pernoitar no quartel. O Tenente Wilson era o Oficial de Motores da Unidade e não estava, como eu, a par do que estava ocorrendo.

Eu morava no quartel. Um paulista no Rio de Janeiro por força do voluntariado a que havia me imposto, para servir na tropa aeroterrestre.

Passado algum tempo, o Coronel Comandante que me havia encontrado quando adentrara ao quartel, mandou-nos chamar em seu Posto de Comando (PC). Chamei o Tenente Wilson na Bateria de Serviços, cumprindo a ordem que recebera e fomos ao gabinete do Coronel.

Lá, o Comandante perguntou se havia mais algum oficial no quartel, além do Oficial de Dia a quem ele seguramente já havia contatado, em seu ingresso no aquartelamento. Diante da resposta negativa, declarou-nos que estava muito preocupado e que recebera do Chefe do Estado-Maior (EM) do então Núcleo da Divisão Aeroterrestre (Nu Div Aet), ordem para aprestar a Unidade, com a missão de prender o Governador do Estado – o senhor Carlos Lacerda. Declarou que julgava aquilo uma temeridade, além de um ato ilegal e havia solicitado ordem por escrito ao Comando.

Perguntou-nos, em seguida, qual o julgamento que tínhamos do fato. Respondemos que, efetivamente, sem os procedimentos constitucionais, seria um problema sério empenhar tropa do EB (Exército Brasileiro) para prender um Governador legalmente constituído no cargo, ainda que a situação política fosse grave e o Governador fosse adversário do Presidente da República.

A ordem era para ser executada durante a visita do Governador ao Hospital Miguel Couto, na manhã seguinte.

Perguntou-nos se contava conosco, pois não iria cumprir aquela ordem, ainda que recebesse o documento escrito. Perguntou-nos, também, o que poderia ser feito para imobilizar as viaturas do Grupo e que, ao iniciar o expediente, na manhã seguinte, assumiria a responsabilidade pelo descumprimento da ordem, colocando o Grupo a par de suas decisões e de seus atos. À pergunta inicial, respondemos afirmativamente, até porque havia uma enorme confiança no Comandante e ele era uma figura não só muito respeitada, mas exercia indiscutível liderança no seu Grupo, pela forma com que agia desde que assumira o Comando.

Saímos do PC com a missão de imobilizar os REOS provenientes do Acordo Militar (Vtr de 2,5 Ton de transporte de tropa e tratoras de peças de Artilharia – os obuseiros de 105 mm).

Em seguida, nos deparamos com um problema. Essas viaturas tinham os distribuidores blindados e seria impossível, durante à noite, em tempo hábil, até a manhã seguinte, realizar a retirada desses dispositivos.

Optou-se por esvaziar os tanques, coletando o combustível em alguns tonéis que foram rolados para o mato nos fundos do quartel, entre o campo de futebol e os limites laterais do aquartelamento. Bloqueamos e lacramos os depósitos de combustível, onde por sinal, como nas viaturas, não existia muito combustível. Além disso, muitas viaturas estavam indisponíveis, sobre cavaletes, por falta de peças.

Retornamos ao Comandante, já amanhecendo, e demos a missão por cumprida, como explicamos de que forma a havíamos cumprido. Neste momento, declarou-nos que não recebera e provavelmente não iria receber a ordem por escrito e que isso, de certa forma, facilitava as coisas. Havia sido chamado ao Quartel-General. Mas, que havia um confronto entre ele e o Comando e que o diálogo entre eles tinha sido muito complicado.

De manhã, à medida que iam chegando ao aquartelamento, os oficiais e demais militares eram informados dos acontecimentos, informalmente pelos que já estavam no quartel. Começaram, então, a surgir dissidências de apoio, entre alguns oficiais e uma movimentação anormal.

Já vivíamos um clima de confronto ideológico, onde o que se passava afetava o companheirismo e o espírito de corpo pára-quedista; por outro lado, o procedimento de alguns oficiais, que se mostravam a favor das correntes políticas vinculadas à Presidência da República, fazia com que grandes embates políticos ganhassem vulto, precedendo o Movimento de 1964. Uns a favor, outros contra...

Posteriormente, o Comandante primeiro falou com o Subcomandante e em seguida chamou o Oficial de Munições junto com seu S/4 (Fiscal Administrativo). Deu-lhes conhecimento dos acontecimentos e reafirmou que não iria cumprir a ordem. Em ambas as reuniões, tanto eu como o Tenente Wilson estávamos no hall de entrada do gabinete que separa a sala do Comandante da do Subcomandante, fora portanto delas. Quais as ordens? Não sei explicitar.

Algum tempo depois, ainda pela manhã, houve um toque de ordem para reunião de oficiais. Reunidos no Salão Nobre, o Comandante deu conhecimento aos seus oficiais, formalmente, com os mesmos detalhes que tínhamos sido informados na noite anterior e explicitou as razões pelas quais decidira não cumprir a ordem.

Deu a palavra a quem quisesse dizer alguma coisa. Nesse momento, o Capitão Juarez de Souza Moreira, de forma respeitosa, inclusive dizendo que tinha uma enorme admiração pelo Comandante, mas que discordava da decisão e apresentou algumas razões que o faziam pensar daquele modo. Esse posicionamento foi, claramente, decorrência das opções políticas que, naquele momento, dominavam os espíritos. Foi, na reunião, a única voz manifesta, mas havia outros oficiais que, fora dessa reunião, se manifestaram contra o Comandante.

Os acontecimentos futuros evidenciaram quem estava contra a decisão do Comandante. Foi um claro divisor de águas. Isto veio à tona, intensamente, por ocasião do Movimento armado de 31 de Março.

Houve muitas conversas entre os militares, a partir dessa reunião. Uma grande maioria optou por não emitir qualquer opinião. O expediente foi retomado.

O Comandante reiterou que a responsabilidade era dele e que não cumpriria a ordem e que, se alguma ocorrência viesse a seu conhecimento, contrariando a sua decisão, ele agiria. Depois passou a dar ordens específicas a vários oficiais, cujo teor não tenho conhecimento. O expediente embora tenso teve continuidade.

Pouco depois, passando pelos fundos do quartel, observou-se uma coluna de viaturas do GUD (Grupamento de Unidades Divisionárias) – que eram pára-quedistas das Unidades de Apoio. Passaram em direção a Marechal Hermes e ao Campo dos Afonsos. Tomamos conhecimento, sem participação na coluna de qualquer oficial ou viatura do Grupo, que a mesma, via Barra da Tijuca, iria executar a ordem.

Essa coluna retornou ao aquartelamento, sem executar a ordem. As especulações sobre esse retorno foram muitas e com várias origens. Os oficiais que participaram dessa coluna devem ser melhores testemunhas do evento, entre a saída e o retorno da tropa, versões que não podemos confirmar, exceto por relatos de outros companheiros pára-quedistas que se disponham a falar. Há relatos que destacavam, incidindo sobre muitas divergências, que a ordem dada teria o objetivo de assassinar o Governador. A controvérsia em torno dessas versões, em face da sua gravidade, jamais pôde ou poderá ser validada pela verdade plena. O fato que se pode afiançar é que ela jamais seria transmitida à tropa de pára-quedistas como uma "ordem de matar" e nem ela seria cumprida, em nenhum escalão, se assim tivesse sido dada, principalmente naquele ambiente de confronto ideológico.

Pode ser que um ou outro se sujeitasse a essa insanidade, mas como corpo de tropa jamais. Se não se pode descartar ou validar as hipóteses sobre essas versões, até porque elas se sujeitam aos desvios das entranhas do mundo político, o fato é que onde eu estava, em nenhum momento, ela foi mencionada como uma "ordem de matar".

Durante o dia, surgiram informações de que essa ordem havia sido decidida entre o Ministro da Justiça – Abelardo Jurema, o Chefe da Casa Civil – Darcy Ribeiro, e o então General Alfredo Pinheiro – Comandante dos Pára-quedistas. Comentou-se à época que o Governador havia sido avisado e deixara de comparecer ao Hospital na hora programada, sendo montado um aparato de defesa com tropa da Polícia Militar.

Em poucos dias, o Coronel Boaventura foi substituído no comando do Grupo, vindo para o seu lugar o Coronel Adalberto Villas-Boas. Este oficial era o Comandante do Grupo quando, pouco depois, eclodiu a Revolução de 1964.

Esse episódio é uma evidência mais que ostensiva daquele confronto ideológico.

Cabe relatar e comentar alguns fatos posteriores, decorrentes do acirramento de ânimos em que aquele conflito de natureza político-ideológica nos envolveu.

Os oficiais que haviam se postado claramente de acordo com o Comandante, no episódio do atentado ao Governador do Estado, passaram a ser alvo de constantes problemas. Uns como alvos preferenciais. Indiscutivelmente, havia uns poucos oficiais comprometidos ideologicamente e estes tinham controle sobre os graduados que também estavam comprometidos. Estes eram os mais agressivos. Deles, passamos a experimentar toda sorte de "traições". Mas, a expressiva maioria, mesmo aqueles que se postaram contra o Comandante no episódio, jamais agiu dessa forma, preservando as relações de companheirismo e a lealdade acima de tudo. Uns poucos, entretanto, armavam situações, em episódios que eram rotina na vida aeroterrestre, para comprometer-nos e provocar, inclusive, punições disciplinares sobre nós. Até ordens comuns na situação de serviço eram contestadas e, também, retardado o seu cumprimento. Alguns graduados se tornaram desafiadores em desobediência a qualquer ordem dada por nós, por mais rotineira e comum que fosse. Isto exigia, sempre, muita energia e decisão de nossa parte e muitos problemas de disciplina surgiram. Os antagonismos, críticas e verdadeiras "armadilhas" atingiam alguns oficiais. Esse foi o caos que se instalou onde antes era notável o companheirismo e o espírito de corpo.

Fui uma das vítimas diretas desses fatos, embora tivesse amizade fraterna com praticamente todos os oficiais, inclusive os que não comungavam de minhas convicções. Passei a ter dificuldade com amigos e até recebi ameaças de alguns, caso me postasse contra (de novo). Havia insurgência que afetava a hierarquia? Havia e de forma intensa e multifacetada. Havia aliciamento ideológico? Havia, a tal ponto que, de certa feita, um dos meus mais próximos companheiros, que, de certa forma, havia contribuído para minha ida para a tropa pára-quedista, me advertiu, em nome da amizade que existia entre nós, que um novo epílogo me aguardava, diferente do que ocorrera no episódio Lacerda e que eu me omitisse diante daqueles acontecimentos em curso, pois repetidas as circunstâncias, se continuasse a enfrentá-los, "passariam com a viatura por cima". Essas foram palavras textuais e mostram bem o clima e o desajuste a que havia se chegado, em termos de hierarquia e de disciplina, pilares essenciais da Instituição Militar.

Estas ocorrências no universo micro do meio militar se tornaram profusas no universo macro da vida do País.

O resultado é que passei a dormir na Bateria de Comando, onde ficava meu alojamento, com uma pistola .45 em baixo do travesseiro. Em novembro de 1963, quando do assassinato do Presidente Kennedy, quase ocorre uma tragédia, no momento em que, sobressaltado, fui acordado pelos oficiais que estavam respondendo ao plano de prontidão e chegavam ao quartel. Ficávamos, pelo menos muitos de nós, pensando em 1935...

Outros oficiais, a maioria, inclusive alguns que foram atingidos posteriormente por atos da Revolução, não se comportavam assim e continuaram a vida no quartel, como antes.

Até o dia 31 de março, vivemos um péssimo clima no quartel. Alguns foram alvo de todo tipo de pressão. No dia 31, como ocorre nos oportunismos de ocasião, quando os riscos se avolumam, muitos passaram a revolucionários de primeira hora. Talvez, por isso, por suas próprias imprudências, atos ou omissões, de quem estava em ambos os lados e pelos algozes gratuitos que sempre surgem, muitos companheiros foram atingidos por Atos Institucionais, mais pelo que falaram do que pelo que fizeram.

Finalmente, ocorreu o 31 de Março! O Comandante em exercício proibiu a entrada no aquartelamento de vários oficiais que considerou comprometidos com o governo deposto. Muitos graduados "desapareceram" por algum tempo e outros receberam ordem de prisão. O passo seguinte foi a instalação de uma Comissão de Inquérito no âmbito do então Nu Div Aet, cuja missão e objetivo eram claros. Apurar e indicar a punibilidade pelos atos que lhes eram atribuídos. Muitas carreiras foram assim interrompidas. Muitos companheiros nos deixaram e deixaram marcas em todos nós, quer porque nem sempre se fez justiça plena, quer porque ela tenha sido feita.

A marca mais profunda, não tenho a menor hesitação em apontar, é a de que pares de uma profissão honrosa, cujo cerne fundamental é o serviço à Pátria, mesmo com o sacrifício da própria vida, tenham-se se voltado uns contra os outros, em nome de uma parafernália ideológica que jamais poderá trazer algo de bom para o Brasil.

Continuei a cumprir as minhas funções. No período da Revolução, a partir do final de março de 1964, novamente fui testemunha do que a ideologia malsã pode fazer, não só às Forças Armadas como ao País...

Vi e vivi o que pode fazer a ideologia a companheiros que tinham o compromisso com a Pátria e tinham o dever de honrar não só a sua condição de Oficial, mas também o espírito de corpo pára-quedista que nos tornava uma boa tropa a serviço do Brasil. Aquele episódio foi uma outra lição para consolidar as minhas convicções, que acabaram guiando os meus passos depois e pelas quais também tive que pagar um preço bastante salgado. A primeira lição havia sido em 1954, com a novembrada, quando eu era apenas aluno da Escola Preparatória de São Paulo, com apenas 16 para 17 anos... Muitas indagações ficaram sem resposta naquela oportunidade, como não podia deixar de ocorrer. Depois na renúncia do Presidente Jânio, onde vi coisas semelhantes... servindo num quartel de Artilharia em Santos. A mesma problemática e o mesmo confronto.

Sempre alertamos que acabaríamos por entregar o Brasil aos "inimigos", se não abjurássemos a autofagia que acabou por engolfar nossos chefes e vários companheiros em todos os escalões hierárquicos, nos anos subseqüentes do processo revolucionário de 1964. Depois tornei a ver, lá mesmo no pára-quedismo, no então Grupo de Obuses Aeroterrestre (G O Aet), quando seqüestraram o Embaixador Elbrick e invadimos o Galeão para impedir a troca de subversivos pelo Embaixador... Vi isso, de novo, quando servi na Presidência, de onde saí para ser preso disciplinarmente em seguida... Por isso, vejo o que aconteceu conosco – Forças Armadas – cujo espelho evidente e irretocável são os dias de hoje, como uma responsabilidade que não há como atribuir a terceiros. Somos os réus da história e fizemos réus entre nós mesmos em ambos os lados... Vitimamos nossos companheiros, de uma forma ou outra. Antes, pelo confronto ideológico que se instalou entre nós e, depois, após dar-lhes missões que tinham que cumprir devido à própria estrutura militar, por deixá-los expostos a retaliações e a toda sorte de acusação.

Vejo isso ainda hoje, ainda que de forma difusa, numa espécie de lamento, porque muitos consideram que já não somos um corpo único feito da Ativa e da Reserva. Mas, o futuro do Brasil depende de que sejamos um corpo único fiel ao povo e aos seus valores, povo esse que nos arma e nos diz qual é a nossa missão!

Nada devemos a governos, exceto a observância da ordem constitucional, mas ao Estado Brasileiro e à Nação! Quem a atingir, deservindo os interesses nacionais, deve nos encontrar de frente! Só assim seremos fiéis à nossa própria história. E não há tempo que mude isso!

Consolidou-se a convicção de que mesmo nós, com toda a formação que tivemos, acabamos nos sujeitando ao que jamais se poderia tolerar ou sujeitar. Mas, o carreirismo e o oportunismo acabam por produzir o que hoje está diante de nossas faces... São as servidões de que falava Alfred de Vigny, no seu eterno e indispensável livro de lições aos militares. A miopia daquela época nos deu a visão distorcida dos dias de hoje.

Sem as escaramuças intraquartéis daquela época, que vivenciamos intensamente naquela quadra da história, mas, de forma muito mais global e muito mais sutil, estamos envolvidos todos nós brasileiros, mesclando interesses de ambas as vertentes que, por incrível que pareça, cooptam entre si, hoje em dia.

A única diferença é que, agora, os militares são os "réus da história" e o revanchismo está encravado no âmago do poder, sujeito às mesmas fontes ideológicas, ainda que com outras faces, como se fora um fantasma permanente a tolher o nosso futuro. Juntos, continuam produzindo os mesmos efeitos – a agressão às instituições militares e o enfraquecimento de seus pilares... Com isso, atinge-se o próprio País. Tudo se justifica – porque os tempos são outros!

Por tudo que a grande e expressiva maioria acreditou, só nos resta lamentar os rumos. Depois de tantos sacrifícios e lutas, mas ainda com a esperança de que possam os brasileiros reverter o destino do Brasil, preservando-o para os brasileiros, como uma dívida que ainda não foi paga!

Sobre tudo isso, o Manifesto dos Capitães da EsAO em 1968 já exteriorizava alertas. Por mais que se queira imputar a oficiais superiores a idéia e o conteúdo daquele documento, o fato é que ele foi feito por Capitães e com uma única motivação – o compromisso com a Instituição Militar, compromisso pelo qual, tinham certeza, se punham a serviço do Brasil. Vindos de todo País e reunidos naquela Escola, eles tinham uma visão muito homogênea dos acontecimentos. A advertência, se por um lado arranhava a disciplina, por outro era uma consistente visão do futuro. Aos homens, cabe a construção do futuro, cada um na esfera de sua tarefa!

Pois bem, já mergulhados dentro do processo revolucionário, após sua eclosão portanto, as ações da insurreição armada, que ainda serão abordadas, voltam a nos encontrar na agora Brigada Aeroterrestre. O Exército ajustara sua doutrina militar à organização de Brigadas. Mudara o nome. A missão era a mesma. Havia assumido o comando do Grupo de Artilharia, onde eu então comandava a Bateria Operacional que integrava a Força-Tarefa Santos Dumont de pronto emprego, o Tenente-Coronel Dickson Melges Gräel.

Em meio às ações de seqüestros, assaltos, sabotagens, assassinatos, é seqüestrado o Embaixador americano. Véspera do Dia da Independência. Ano 1969. Exigência – a libertação de "terroristas", entre eles até quem tinha seus pecados, mas que não merecia apoio e implorava para não ser trocado e para ficar no país (aqueles são os "heróis" da democracia de hoje). Constavam de uma lista feita pelos seqüestradores. Um avião da Força Aérea deveria levá-los em segurança para o México.

O Presidente Costa e Silva havia sido impedido por doença e uma Junta, composta pelos três Ministros Militares, decide ceder às exigências dos seqüestradores, por várias razões de estado: a preservação da vida de um representante de governo estrangeiro, a expulsão de terroristas do País, a pressão dos EUA, etc. Todas elas, como outras tantas, relevantes, mas que revestia o ato de conseqüências imprevisíveis que acabaram se reproduzindo na onda de seqüestros de autoridades que sucedeu àquele episódio. A decisão da Junta deu ao terrorismo a convicção de que aquele era "um bom negócio" e que as forças de segurança eram derrotáveis por aqueles métodos.

O governo dos EUA nunca negociou a vida de seus representantes com o terrorismo. O risco é inerente à missão diplomática. Tanto mais, em uma época em que os EUA apoiavam incisivamente a Contra-Revolução de 1964, inclusive por meios não tão diplomáticos, como hoje tentam se santificar em nome da "democracia e da liberdade", mas, na verdade, em nome de seus interesses atuais.

Por outro lado, os seqüestradores daquela época discursam no Congresso e em todos os lugares em nome da democracia e, hoje, também em nome dela, mandariam para a prisão quem realizasse um ato semelhante. Em contraponto, já libertaram os que fizeram seqüestros iguais de nacionais, sob alegação de realizar "expropriações" de dinheiro dos "exploradores do povo", para financiar a sua causa. Tratam o crime hediondo como crime político, porque é praticado por comunistas. Eles são absolvidos de seus pecados, em nome da ideologia. Seu perdão é inerente a seu credo ideológico e seus atos foram santificados pelo seu "idealismo e coragem"! Jamais foram considerados atos criminosos e, se foram, encontraram justificativas para isentá-los de responsabilidade!

Surge, então, neste episódio, nos três Batalhões de Infantaria Pára-quedistas uma reação que iria às portas do General Comandante da Brigada Aeroterrestre. Era um confronto àquela decisão que teria início com uma recusa em desfilar em continência à Junta, no 7 de Setembro. Consultado pelos comandantes das Unidades de Infantaria, vindos em bloco ao seu gabinete, o Comandante da Artilharia se solidariza e comunica aos seus oficiais a sua decisão. No meio das interlocuções, a partir de possíveis consultas ao General-de-Brigada Adauto Bezerra de Araújo, Comandante da Brigada Aeroterrestre, e ao seu ex-Comandante – General-de-Divisão João Dutra de Castilho, que comandava então a 1a Divisão de Infantaria (1a DI) e Guarnição da Vila Militar, e, daí, seguindo os escalões de comando, passando pelo I Exército, os Comandantes das OM de Infantaria, sediadas no Arroio dos Afonsos, refluíram da decisão que haviam tomado e comunicado aos seus próprios oficiais. Reconsideraram por razões ainda desconhecidas até hoje e de forma muito estranha, uma vez que eles próprios ou um deles, agindo em nome dos demais, tomaram a iniciativa de propor aquela conduta ao Comandante do 8o Grupo de Artilharia Aeroterrestre (8o G A Aet), obtendo sua adesão, exatamente para não houvesse uma fratura interna entre os pára-quedistas. Refluíram... sejam quais forem as razões que tiveram para fazê-lo.

Comunicam isso ao Comandante da Artilharia, quando este se juntava a eles diante do General, à porta do seu gabinete. O Tenente-Coronel Dickson decide que não tinha condições morais de voltar atrás. Já havia comunicado a decisão a seus oficiais. Fica isolado com sua Unidade, exceto pela solidariedade dos oficiais da Infantaria que também se recusam a voltar atrás.

Seu Grupo forma na madrugada de 7 de Setembro em continência à data, no interior do aquartelamento, com todos os militares. Não desfila. Não integra a Brigada. Esta vai para o desfile com as ausências de oficiais que se negaram, também na Infantaria e nas outras Unidades da Brigada, a rever suas decisões.

É este tipo de ocorrência e sua fenomenologia que vai se reproduzir em muitos outros eventos posteriores, envolvendo os episódios da luta armada que se instalava no País e no processo revolucionário de 1964 e seus governos. Essas hesitações, bloqueios, divergências e contra-ordens, em função da missão e de como se devia cumpri-la. Essa dinâmica será responsável, como veremos, pelos distanciamentos entre governos oriundos dos quartéis, referendados pela classe política, e os meios militares. Nestes, de uma forma ou de outra, os apoios pendiam ora para o governo, ora para os chefes militares que se sentiam responsáveis pelo Movimento de 1964. À exceção do Presidente Médici, talvez devido ao progresso econômico observado em sua bem sucedida gestão, em decorrência de medidas de seus antecessores e de seu próprio mandato, todos os outros generais-presidentes tiveram esse fenômeno presente em seus governos.

Enquanto aquelas interlocuções tinham vez, oficiais de todas as unidades pára-quedistas decidem montar uma operação de interceptação da aeronave que levaria os terroristas ao México. Eles estavam sendo reunidos no Galeão, provenientes de vários lugares onde estavam presos, à disposição dos IPM ou da Justiça. Por essa circunstância, a hora da decolagem fora fixada para 19h. Era a informação que nos chegara. Montada a operação com a rapidez exigida, os oficiais excluíram dela todos os graduados, para preservá-los de efeitos disciplinares e para fazer recair sobre si próprios a responsabilidade pelo ato que colidia, frontalmente, com o mais alto escalão superior. Também, para não empenhar subordinados que certamente seguiriam suas ordens, pela confiança e liderança sólida que ali imperava. Eu mesmo tive que fazer retornar ao quartel uma Bateria inteira que se dispunha a seguir seu Comandante, tão logo tomaram conhecimento do fato pela movimentação das viaturas.

Como todos estavam cientes das conseqüências que envolveriam a operação, só voluntários integraram a força de interceptação. Após o apronto, esse grupamento deslocou-se em viaturas que eu forneci na condição de Comandante de Bateria e a ela me integrei. Todos estavam cientes que o objetivo era impedir a entrega dos terroristas e criar um fato consumado que seria responsável por dois outros objetivos: primeiro, evitar a onda de seqüestros e mortes que acabou se sucedendo, impondo uma derrota à insurreição armada, exemplarmente e de pronto, ainda que à custa da vida do Embaixador – fato perfeitamente avaliado e possível na radicalização do terrorismo e de seus adeptos, mas cujo ônus recairia sobre eles mesmos. Segundo, abreviar a vida da Junta Militar – uma figura inédita na história republicana – de forma que o processo revolucionário optasse por um Chefe Supremo capaz de refazer a estrutura de governo, fragmentada pelo impedimento do então Presidente, acometido de doença irreversível. Os fatos da luta armada e os atos de governo estavam a indicar que um governo tríplice era uma solução que não poderia perdurar. A capitulação ao primeiro ato de força do terrorismo, com repercussão internacional, endossava essa avaliação. Seus efeitos seriam danosos, como de fato vieram a ser... em termos de vidas humanas!

A operação não teve sucesso. Alguns entendem que ela foi abortada por informações vazadas de dentro da própria tropa pára-quedista, por quem agira como "agente duplo" ainda que, tanto quanto possível, o sigilo dessa operação tivesse sido resguardado. Outros acham que as informações que nos foram transmitidas já faziam parte de um esquema de segurança para evitar as interceptações. Seja qual for a versão correta, estas informações anteciparam a reunião e a decolagem, de forma que, quando a tropa chegou ao Galeão, o vôo já se encontrava na rota entre o Rio, Recife ou Manaus, onde haveria escala técnica. Essa operação surpreendeu o então Coronel Aviador Comandante da Base Aérea em seu gabinete, onde o destacamento precursor o encontrou mudando de roupa e nessa condição permaneceu, sentado, até a saída dos pára-quedistas que o integravam. Nenhuma escaramuça, confronto, dissensão, além do diálogo necessário, ocorreu. Apenas, aquele oficial declarou sua surpresa e concordância com a troca feita.

Partiu-se então, embora sem o trunfo principal (a captura e a escolta dos terroristas para um dos quartéis, no aguardo da evolução dos acontecimentos, diante do fato consumado), para a segunda parte – o anúncio do resultado da operação ao País, através da Rádio Nacional. Tomada essa emissora, o texto lido no ar para todo o País sofreu as correções decorrentes do primeiro objetivo não ter sido atingido. Essa proclamação pertence à história e não precisa ser repetida. Ela traduzia a repulsa à capitulação ao ato terrorista. Ela foi lida por um oficial que não era pára-quedista militar, como uma homenagem a ele, pelo seu destemor e ímpeto, agregando-se à missão. Era o Capitão de Infantaria Manoel Luiz Braga Vieira – aluno da EsAO, em 1969.

O outro objetivo – a substituição da Junta por um Presidente, se não foi decorrência desse episódio, foi tornada imperiosa pelo que, acertadamente, haviam avaliado os oficiais que dela fizeram parte. A onda de seqüestros e atentados varreu os meios urbanos, de norte a sul do País! Nela, muitas vidas de nacionais foram ceifadas pela troca que se havia feito pelo Embaixador americano. Os "heróis da democracia" de hoje foram os responsáveis pela perda dessas vidas. Digam o que disserem, essas mortes lhes pertencem por inteiro. Acobertados diante dos homens por razões políticas e do seu credo ideológico podem estar impunes, mas um dia responderão por elas ao Criador de todas as coisas! Nenhuma delas foi "indenizada" pelo Estado e muito menos lembrada pela defesa dos princípios democráticos "tão caros" aos áulicos e políticos de hoje.

Alguns oficiais foram transferidos da tropa aeroterrestre, após as naturais punições disciplinares que, à luz dos dispositivos regulamentares, eram mais que naturais e justas. Todos que participaram da operação foram presos. Sempre estiveram prontos a isso, tranqüilamente. Entre estes, muitos foram devidamente "disciplinados" e se enquadraram nos novos tempos. Eu fui um dos afastados da tropa onde servia com orgulho e com plena dedicação. Fui também um dos que não se enquadraram bem nos novos tempos, ainda que tenha ido parar, com a Unidade para onde fui transferido, na guerrilha do Vale da Ribeira de Iguape. Por força do destino... combatendo as mesmas figuras e os mesmos métodos. Como se vê o homem não é só ele, mas ele e suas circunstâncias (menciona Ortega y Gasset).

Ali, de novo, vi e vivi a luta armada e todos os seus efeitos, agora no meio rural. É para onde a "utopia" comunista havia voltado parte de seus efetivos. Algum "estrategista" divorciado da realidade nacional se convencera dessa opção militar – a guerrilha rural – ao estilo vietnamita ou cubano, para vencer o Exército que nunca antes na história fora derrotado.

Antes disso, devo concluir o relato que encerrou a minha participação na Brigada Pára-quedista, tropa à qual jamais me deixaram retornar e onde pude vivenciar a extraordinária condição de ser soldado, plenamente.

No retorno ao quartel, após a operação Galeão, surge um informe que o Regimento de Carros de Combate de Campinho recebera ordem de invadir o Grupo de Artilharia Pára-quedista. Nova tomada de decisão crucial. Ninguém entra no quartel sem ordem do Comandante! A ordem era simples e direta – combater qualquer tentativa de invasão, fosse quem fosse o oponente. Dispusemos os obuses municiados com carga máxima, prontos para o tiro direto contra carros em vários pontos, flanqueando as vias de acesso em todas as direções e numa delas para tiros frontais de dentro dos próprios pavilhões, usando dissimulação e fator surpresa.

A tropa disposta para rechaçar qualquer assalto, inclusive fora das guarnições dos obuses, assim permaneceu em vários pontos, de forma a intervir sobre os carros pela retaguarda e flanco. Foram horas cruciais e de grande tensão. Nenhum carro surgiu!

Duvidei, como duvido até hoje, que um chefe militar da época, em particular os que eram responsáveis pelos escalões imediatos, dessem uma ordem dessas.

O quartel dos artilheiros pára-quedistas foi entregue aos que nos sucederam da forma como o havíamos recebido. Graças a Deus! Estaríamos combatendo o "inimigo" errado. Quem viesse a tentar essa invasão, da mesma forma. Mais do que isso, servindo aos propósitos do "inimigo real", com o fogo "amigo".

Não devo e não posso encerrar este depoimento sobre a Brigada, sem registrar que apesar de ter ficado em oposição ao General Adauto, no episódio da troca dos terroristas, movido pelas circunstâncias dos fatos, sobreveio sempre um lamento que jamais deixou de me acompanhar. A figura do Comandante não só era de um pára-quedista valoroso, como de um Comandante extraordinariamente preocupado com a integridade de seus subordinados, numa atividade com risco permanente. Era profundamente humano. Eu mesmo, pessoalmente, pudera testemunhar quanto apoiava seus subordinados e a que limite chegava esse apoio. Tinha por ele uma grande admiração. Essa foi uma dura lição que tive que vivenciar.

Ele, movido por suas circunstâncias, convicções e responsabilidades de comando e eu, como o meu Comandante direto, o Tenente-Coronel Dickson, da mesma forma. Este tinha, também, pelo General o mesmo sentimento que, em mim, representava um conflito extremamente penoso. Cada um de nós movido pela servidão que acompanha, sempre, o dilema dos soldados. Além disso, havia sido o General Adauto que propiciara, com decisão de comando e apoio necessário, a interrupção de um longo período onde a Artilharia Pára-quedista se via descaracterizada de sua missão aeroterrestre, pela ausência de lançamentos das peças e exercícios de ocupação de posição com tiros de artilharia em PTO, típicos da sua missão. Era a missão completa – a Artilharia na cabeça-de-ponte aérea!

Desde 1954, com o acidente de um lançamento de Artilharia na AMAN, portanto em 15 longos anos, não se realizava o que deveríamos fazer rotineiramente, como atividade daquela tropa. A missão e a característica operacional da Artilharia Aeroterrestre havia sido retomado com ele e por apoio dele. A mim, coube a honra de planejar e executar essa retomada de rumo no comando da Bateria Operacional. É uma das mais efusivas lembranças que guardo da vida militar, quer como artilheiro, quer com Precursor pára-quedista. Para isso, aquela Bateria de Artilharia havia sido preparada.

Esta era outra das fortes razões para a tristeza que esse episódio me trouxe e cujas lições jamais pude esquecer. Estive em posição oposta a quem devia gratidão pessoal e por quem tinha admiração profissional, como Comandante e como pára-quedista. Isto aconteceu a centenas de militares, nestes anos todos.

Por que cito este fato no derradeiro momento de minha experiência na Brigada, sobre a Revolução de 31 de Março? Porque nele está, em toda sua dimensão, a grandeza e a servidão da profissão das armas e porque aí, também, está o dilema que o acompanhou no contexto em que este testemunho se situa, como em toda a vida de todos os exércitos. Durante todo período do Movimento de 1964 e nos de suas conseqüências, esse dilema esteve e está presente no meio militar.

Quando tive que combater meus compatriotas em meu próprio País, esse dilema se transformou numa tragédia, sem que jamais eu a tenha conseguido entender, por completo!

Quais, na sua opinião, os principais líderes civis e militares da Revolução de 31 de Março de 1964?

O líder do movimento foi quem o deflagrou. Qualquer outra opinião esbarra em contradições naturais e típicas dos processos revolucionários. Esses processos tem sempre seus construtores e os seus condutores. Nem sempre ou quase nunca são os mesmos. Entre ambos há muitos nomes. O líder do movimento de 1964 foi o General que colocou suas tropas na rua, para contrapor-se ao que ocorria. Esta é a minha opinião.

Portanto, situo no General Guedes essa liderança, a quem por sinal a história desse movimento não faz justiça. Nos eventos críticos de eclosão revolucionária sempre caberá ao soldado o passo decisivo. É da natureza de sua missão. Só nestes episódios se percebe a grandeza de sua missão e só diante da insegurança da vida nos conflitos, essa missão é melhor percebida e bem compreendida, pelas demais parcelas do povo.

As tribunas dos juízes decidem sobre as leis e se a justiça ao povo se fará ou não. A força garante a eficácia dessas decisões. Sejam elas quais forem. Isto é imutável, na história humana, ainda que o seu emprego não se torne necessário e simplesmente garanta o Direito.

 

A Revolução de 31 de Março de 1964 foi um movimento exclusivamente de preparação interna ou houve auxílio externo, em especial dos EUA?

A Contra-Revolução de 1964 foi germinada e deflagrada primordialmente por fatores internos e conduzida por personalidades nacionais. Entretanto, em decorrência da bipolaridade predominante no mundo, ambas as vertentes recebiam apoio externo. Isto é inerente às relações internacionais, à política externa, em particular a dos países hegemônicos. É uma característica daquele contexto da chamada "guerra-fria". Nele eram sensíveis as áreas de influência e a projeção de poder, visando à preservação ou expansão dessas áreas de influência.

Daí, a se caracterizar que o planejamento e a execução, em si, do Movimento de 1964 teve inspiração e origem externas é uma manipulação histórica, aliás típica da dialética dessas vertentes em confronto, tentando explicar o fato, de acordo com seus dogmas e interesses. Hoje o Ocidente, em particular os EUA, posta-se como crítico da Contra-Revolução de 1964, fornecendo argumentos, tornando público documentos secretos de suas agências e inclusive cooptando os governos que sucederam os generais-presidentes, como se fossem arautos da democratização que agora saúdam em nome de seus interesses nacionais. Eximem-se do que fizeram e apoiaram, em nome daqueles mesmos interesses nacionais, prevalentes à época.

Da mesma forma, países do antigo bloco comunista e os que ainda nele orbitam seus regimes políticos omitem os atos de ingerência externa e as afrontas que praticaram à autodeterminação de outros povos. Esses apoios externos subterrâneos ou ostensivos, ambos multiformes, existiram fartamente. A origem, natureza e extensão desses apoios e seus diversos matizes se vinculam à ideologia dominante neste ou naquele país e à sua capacidade de projetar poder.

 

A hoje chamada "mídia" apoiou o Movimento? Poderia citar exemplos?

A mídia nacional apoiou o movimento e mais do que isso, ajudou a prepará-lo juntamente com outras instituições do País. São milhares de exemplos. Basta expor os arquivos jornalísticos e as edições dessas empresas de mídia, daquele período. Esses arquivos não só existem, como são muito bem conservados e são uma fonte ilimitada de prova dessa afirmação. Eles são a história dos jornais.

Cabe aqui uma explicação. Da mesma forma que ocorreram os apoios externos de países, espelhando os seus interesses nacionais e os fundamentos de suas políticas externas, com a mídia não foi diferente. Esses mesmos países que apoiaram uma ou outra vertente, depois, também em função de seus interesses, as desapoiaram ou reverteram o apoio. Uns até ajudaram a definir o encerramento do regime, oriundo daquele movimento. Outros omitiram-se de seus atos.

Com a mídia ocorreu exatamente a mesma coisa. Milhares de variáveis explicam esse fenômeno contraditório. Não cabe aqui a sua análise. Mas, na mídia nacional, um fator determinante de desapoio foi o seu endividamento e a perda da independência das empresas da área, sobrevinda com as crises econômicas e com os modelos econômicos que o Brasil adotou.

A sobrevivência dessas empresas submeteu-as a interesses dominantes. Na globalização, isto foi levado às últimas conseqüências, uma vez que aí as vias de informação passaram ao controle de fontes únicas de notícias.

Outro fator ponderável foi a infiltração da vertente da esquerda nestas empresas, passando a controlar a formação de opinião e a criar a nova versão histórica que hoje domina a cena nacional. Esta mesma infiltração ocorreu na área da educação, também de forma contínua e intensa.

 

A mídia, nesta última década, e aqueles que, hoje, detêm o poder fazem absoluta questão de omitir os acertos da Revolução de 1964. O senhor poderia citar os principais?

A resposta anterior dispensa o comentário. A "revanche dos vencidos" operou na mídia, no ensino sistêmico, nos sindicatos, etc, principalmente, nas organizações políticas e, nestas últimas, as vestais que usufruíram das benesses e da cooptação com o regime oriundo de 1964, como libélulas do poder, encontraram razões e caminhos para mudar de lado. Estão, aí, transitando entre tucanatos, estrelas vermelhas, foice e martelo maquiados ou não, liberais, socialistas, progressistas, movimentos democratas etc., e costurando qualquer tipo de acordo que os abrigue nas sombras dos novos detentores do poder e lhes traga vantagens políticas.

Basta um exemplo contundente dessa omissão – Éramos a 48a economia do mundo. Chegamos a ser a 8a no período do Movimento de 1964. Hoje somos a 15a ... e descendo... entre as economias do mundo. Qualquer outro exemplo é dispensável!

 

O senhor acha que a Revolução de 31 de Março de 1964 cometeu erros? Caso positivo, quais foram?

Sim. Cometeu e nem poderia ser diferente. A obra a fazer e a feita exigiam muitos feitores e era de porte monumental. Os erros e sacrifícios acompanham as grandes obras. O maior e o mais grave deles – a autofagia entre os líderes militares, acompanhada de uma espécie de síndrome de desfibramento das Chefias Militares e de um relativo abandono dos valores, das servidões e das grandezas da profissão das armas. Há quem chame a isso de predomínio dos vocacionados e profissionalismo. Eu entendo que essas coisas todas não se opõem e menos ainda se excluem.

No meio civil, tudo o que possa ser catalogado como erro não tem autor, responsável ou sequer coadjuvantes, após o processo de 1964. A própria esquerda manipula ao dizer que a "guerra interna" que seus integrantes promoveram não foi culpa dela, mas dos mecanismos revolucionários, quando estes, sim, foram conseqüência daquela. O pecado desses erros recai sobre o meio militar e por isso ele é o "réu da história" na versão vigente na atualidade. Isto interessa a todos, à esquerda que chegou ao poder político e aos países que tem interesses econômicos em nossos recursos e em nosso mercado. E... aos que, particularmente, nos situam como alvo estratégico de suas políticas externas. Em nome desse conluio de interesses é que a estrutura militar brasileira foi reformada na sua cúpula.

 

Os sucessos econômicos, obtidos pela Revolução de 1964, durante os anos 1960 e, principalmente, na década de 1970, considerados os maiores da Economia Brasileira por renomados conferencistas civis que têm passado pela ESG em nossos dias, continuam sem a devida e justa divulgação. Quais os motivos determinantes desse fato?

As três questões imediatamente anteriores explicam as razões. O fato conclusivo é que os derrotados pelo Movimento de 1964 retomaram o poder político e, diga-se de passagem, com apoio e ajuda decisiva das proeminentes figuras civis, beneficiárias do regime pós 1964, que ainda estão por aí dominando a cena política. Não é necessário citar nomes. Apenas trocaram de vestimenta e agora veneram os "valores da democracia" restaurada. Havia um nome para eles – eram as vivandeiras dos quartéis!

Mas, há outros fatores que inibem essa divulgação da obra nacional do período. Um dos mais importantes deles é o conluio entre próceres da esquerda que chegaram ao poder nas duas últimas décadas e os interesses estrangeiros. O "entreguismo" crônico que sempre dominou a elite nacional, assumiu proporções avassaladoras. Esses modernos tipos de Calabar, no processo conhecido como globalização, alteraram a ordem econômica constitucional, dando-lhe novo feitio. Com isso, iniciaram o desmonte da infra-estrutura econômica, montada por 1964. Desnacionalizaram a economia do País, o endividaram exponencialmente e romperam os mecanismos estruturais que poderiam dar ao Brasil a base necessária para um progresso auto-sustentável.

Tudo o que havia sido feito foi considerado um "estatismo" jurássico e que deveria ser destruído. Para isso, qualquer notória mentira governamental passou a ser uma verdade inquestionável e nos tornamos cativos da onda internacionalista das novas regras que ficaram conhecidas como Decálogo do Consenso de Washington. Sujeitamos o país à recolonização econômica e ao endividamento crescente. Entregamos quase tudo ao estrangeiro. Do sistema de telecomunicações, passando pela infra-estrutura de energia, ao sistema financeiro. A onda absorveu quase tudo.

O que fora construído antes tinha que ser derrocado, atendendo à cooptação entre o novo poder político interno, a montagem de meios para seu controle, e os interesses externos! Esse mesmo processo também submeteu a mídia nacional, como não podia deixar de ser e ela passou a servir aos novos senhores, por razões que já mencionamos. Portanto, a formação da opinião nacional submeteu-se aos mesmos ditames. Rui Barbosa dizia que a imprensa era "os olhos e os ouvidos" da democracia. Adveio cegueira e surdez que os brasileiros têm esperança de que sejam doenças temporárias.

O tamponamento das conquistas do período passou a ser uma necessidade do Poder e de seus novos personagens.

 

O que o senhor tem a nos dizer acerca de ações de guerrilha e de terrorismo (seqüestros de embaixadores, assaltos a quartéis, a bancos etc.) praticados por extremistas?

Esses fatos faziam parte da "guerra interna" que foi imposta ao País, após o Movimento contra-revolucionário de 1964. Sob o ponto de vista da estratégia militar, eles não tinham base de sustentação ou possibilidade de sucesso. Sob o ponto de vista político, encontram sua lógica em decisões de cúpulas, grupos ou organizações revolucionárias internas, apoiadas pelo exterior. Era um meio residual visando permanecer sob o impulso ideológico que fracassara, no projeto político antecedente.

Sob o ponto de vista da tática militar, era o que estava nos manuais de "guerra revolucionária" e nos centros de treinamento que existiam nos países sob regime comunista e o que restava fazer, para a esquerda e pela esquerda.

Por mais que a esquerda a justifique e tente imputar suas motivações aos mecanismos de exceção, o fato é que foi o único caminho que lhe restou. Usar meios dentro do processo legal, não só era inviável sob as regras da "guerra-fria", como, politicamente, prolongaria os efeitos do sucesso econômico que se observava no período, reforçando o processo pró-64. Dentro dos limites legais da época, a esquerda minguaria como força política.

Foi, portanto, uma opção político-militar da própria esquerda e de sua inteira responsabilidade. É notório que nem toda a esquerda o referendou, mas nada fez, também, para conter suas ações. O pior ônus dessa solução foi que aquelas cúpulas e seus líderes lançaram um enorme contingente de jovens brasileiros numa luta fratricida, manipulando seu idealismo para mortes inúteis, enquanto as lideranças permaneciam ao abrigo do desafio e do confronto com o Exército.

Vale ressaltar que, nestes casos, as versões hoje difundidas, tomando-se como exemplo, pelo menos dois dos episódios mais relevantes – a guerrilha do Vale do Registro e a de Xambioá – são de uma irrealidade quase que surrealista. Fazem parte da orquestração da "revanche dos vencidos". Serve ao poder atual e serve aos mesmos objetivos ideológicos de antes de 1964 – à conquista e manutenção do poder político e ao controle das mentes e da opinião pública. Paradoxalmente, serve também e simultaneamente aos interesses externos, imobilizando as Forças Armadas em sua participação no processo decisório de governo como componente do Poder Nacional e até ajudando a mudar a estrutura militar brasileira, como se fosse ela a ameaça à democracia.

Isto explica o conluio entre a esquerda de hoje e a de ontem, aplicando, aqui, atualmente, a nova dogmática daqueles interesses externos, que prevalecem até hoje, agora dentro da chamada nova ordem. Nada teve a ver com a melhoria de sistemas logísticos, operacionais, de armas ou da administração das Forças Armadas. Elas são hoje o resultado dessa desestruturação que renegou a experiência e o modelo anterior, para atender exclusivamente a objetivos e interesses políticos.

Já não existia mais, como objetivo primordial, o controle da expansão comunista. É, portanto, também e contraditoriamente, uma alavanca dos ideólogos da globalização.

Contraditório? Absolutamente não. Mas, tão real e de percepção possível, desde que haja um mínimo de acuidade e isenção ideológica, na análise dos fatos. Enquanto não formos capazes de perceber essa engenharia do poder e a sua simbiose não mudaremos os rumos do País.

Nos episódios urbanos destes seqüestros, roubos e assassinatos, julgamentos, atos de terrorismo em geral, cabe ressaltar duas coisas.

Primeiro – morreram mais civis, militares, policiais civis e militares e pessoas inocentes que terroristas ou membros de organizações de esquerda, neste longo confronto que fragilizou o Brasil. Esta verdade tão cedo não emergirá!

Segundo – as versões, independente dos episódios críticos ou reprováveis de qualquer "guerra", não passam nem perto pela realidade dos fatos, na maioria esmagadora das vezes, e não têm compromisso nenhum com a verdade histórica. Elas são servas acoitadas dos objetivos ideológicos e foram construídas para servi-los. Concentram-se em alguns fatos e neles se circunscrevem. Infelizmente, esses objetivos ainda disseminam a cizânia entre os brasileiros.

 

Que fatos gostaria de abordar decorrentes de sua participação pessoal na Guerrilha do Vale do Ribeira, ocorrida em Registro e em outros municípios situados naquela área?

Esse episódio, envolvendo áreas dos municípios de Registro, Jacupiranga, Eldorado, Sete Barras, Pariquera-Açu, Iguape e Cananéia até o Vale do Rio Quilombo ao norte, se situou em uma das áreas mais pobres do Estado de São Paulo, o mais desenvolvido do País. Isto configurou a obediência a dogmas das insurreições que preconizavam a busca de apoio da população à ação revolucionária na área militar e que esse apoio era conseguido mais eficaz e rapidamente nos segmentos e regiões mais pobres.

Os efeitos desse esforço de parte da esquerda que optou pela luta armada, por outro lado, seriam colhidos com maior impacto, por se situar no Estado mais desenvolvido do País e junto ao eixo onde o apoio logístico de fora da área, oriundo do meio urbano, suprisse mais facilmente essa primeira experiência de guerrilha rural, em sua fase inicial.

Este fato decorria da inexperiência desses grupos neste tipo de operação e, também, do desconhecimento relativo da realidade nacional. No começo, essa guerrilha tinha características de campo de treinamento e área de acolhimento e abrigo de evadidos dos confrontos urbanos. Passando as etapas, elas serviriam de base para ações militares, se houvesse êxito na experiência inicial. A sua inspiração genérica era essa e o objetivo mais amplo – o mesmo das demais ações da luta armada: pelas armas impor um regime comunista ao país!

Como se vê, religiosamente de acordo com os manuais das insurreições comunistas da época, tratando de ações em força e cujas fontes externas dispensam citação. O líder desse grupo que se instalou no Vale do Ribeira era um ex-Capitão, desertor do Exército – Carlos Lamarca – que já tinha ligações com organizações comunistas e era um espião dentro das Forças Armadas, desde os tempos que ingressara na Escola Militar.

Muitos fatos durante seu período de formação evidenciaram a sua servidão ideológica, ainda que as Forças Armadas, em princípio, ofereçam aos jovens brasileiros o acesso onde nenhuma discriminação de raça, religião ou classe social se vê presente. Por isso mesmo, aqueles muitos indícios só vieram a ser verificados depois.

Após ter sido descoberto e a partir de quando, roubando armas de seu próprio quartel, dele se evadiu com seus comparsas graduados (antíteses de soldados) e ingressou na clandestinidade e na luta armada, aquele perfil ideológico veio à tona.

Como se vê, o juramento de honra militar e de submissão ao dever nem sempre subsistem nos comunistas de forma linear. Prestes, o líder comunista com máxima reverência histórica no Brasil, quando decidiu se insurgir contra esse juramento, pediu demissão do Exército e depois se integrou na revolução tenentista. Não traiu, nem desertou do Exército do qual era integrante. Só se tornaria comunista muito depois da coluna que acabou recebendo o seu nome, embora chamada também de coluna Miguel Costa. Uma coisa era o Capitão Prestes que se integrou na coluna Miguel Costa. A outra foi o Prestes, comunista, após a declaração a que seu companheiro, Siqueira Campos, se contrapôs, tendo morrido no acidente aéreo, tentando demovê-lo da adesão ao comunismo. Talvez a este – o Tenente Siqueira Campos – um soldado e patriota da melhor estirpe, coubesse dar o nome à coluna, se alguém devesse receber esse privilégio no lugar de Miguel Costa. Pois é a ele e às suas ações de vanguarda que essa coluna deve a sobrevivência e o tempo em que conseguiu durar, por quase 26.000 Km de Brasil, onde desafiou, sem ser derrotada, as forças legalistas.

A deserção e traição do ex-Capitão Lamarca não foi um fato inédito. Mas foi uma abjeta traição! Ela já fora mais sangrenta e profusa. Mais... vale como alerta e como memória para os mesmos riscos e traições, como houve em 1935. Cada dia que passa, mais ainda!

A ideologia comunista é capaz de transformar alguns homens dessa forma, imputando-lhe a mais torpe das características dos credos políticos – a de que os fins justificam os meios! Várias bases foram instaladas, a leste e a oeste da BR-116, como campos de treinamento. A maior delas ao sul do Vale do Ribeira, no município de Jacupiranga, numa área montanhosa coberta por mata subtropical. O acesso ao eixo São Paulo-Paraná ficava a menos de 4 Km.

Quando o Exército "levantou" a área, pela delação de dois terroristas presos no Rio, e para lá começou enviar efetivos, essa guerrilha se resumiu ao uso de rotas de fugas permanentes, por parte do efetivo terrorista remanescente. A maioria havia saído, abandonando a área, quando os sinais de tropas começaram a aparecer.

Portanto, essa história de enfrentamento com o Exército não passa de mito, que alguns fatos, infelizmente, ajudam a construir, particularmente a "vitória" que a esquerda, por enquanto, obtém na "guerra das versões". Esta é a única guerra que parece estarem vencendo. Veremos até quando!

De relevante, há a mencionar alguns eventos do episódio em sua seqüência cronológica:

Da base devassada pela ocupação dos pára-quedistas, Lamarca e seus asseclas (menos de 10 ao todo) empreenderam uma rota de fuga pela mata em direção a Eldorado (rumo oeste portanto, internando-se na mata). Esta evasão durou alguns dias, enquanto os efetivos do Exército e da Polícia Civil e Militar de São Paulo operavam na área ao longo da BR, em ambos os lados desse eixo e na direção norte e sul. Nesta localidade, roubaram uma viatura civil e atravessando o Rio Ribeira para a margem norte, vieram por um eixo vicinal, contíguo à essa margem norte, entre o rio e as plantações de banana e a mata, em direção de Sete Barras.

Nessa fase, a tropa de pára-quedistas que invadira a área e nela operava havia retornado ao Rio. Ali, permaneciam alguns efetivos já reduzidos de tropas de Regimentos de Infantaria sediados em São Paulo e efetivos de Artilharia da Cidade de São Paulo, Itu e da Baixada Santista. Uma base de apoio logístico se instalara no campo de aviação de Registro e ali permanecia.

Os vários indícios e o roubo da viatura em Eldorado levaram um contingente da Polícia Militar (PM) a ser empenhado. Estes elementos eram do pelotão que havia ficado na área, para o comando do qual um Tenente PM havia se apresentado como voluntário. Em um caminhão, cumprindo ordens, o efetivo da PM foi lançado naquela estrada vicinal, na direção contrária, no sentido Sete Barras para Eldorado. Era a tropa disponível. Já anoitecia e a percepção dessa viatura policial-militar permitiu ao ex-Capitão antecipar uma emboscada que foi desencadeada com rajada de fuzis automáticos contra a boléia, onde estavam dois tenentes PM, e contra a carroceria com a cobertura de lona, onde estavam duas dezenas de soldados PM.

Não há como negar, portanto, a intenção de matar. Com o tipo de armamento roubado da própria subunidade que comandava quando no Exército e que é capaz de disparar 60 tiros por minuto, não há o que discutir. Era tiro para matar. Naquele tipo de alvo, numa emboscada naquelas condições, o efeito foi devastador – a maioria dos PM foi atingida e ficou ferida. Um dos tenentes abrigou-se e, mergulhando, saiu muito depois, rio abaixo, levado pela correnteza. O outro – o Tenente PM Mendes – que era o Comandante voluntário acima mencionado, se oferece como prisioneiro em troca de seus soldados para que pudessem ser socorridos e não fossem assassinados. É feito prisioneiro! Com o Tenente PM na condição de refém e escudo para situações futuras, esse grupo, no único confronto digno do nome, ocorrido pelas condições fortuitas e pela vantagem momentânea dos terroristas com o fator surpresa e com enorme superioridade no tipo de armamento (o armamento da PM era o fuzil 1908 de repetição), sai, então, infletindo pela mata a pé, tomando o rumo norte, abandonando a estrada vicinal e desviando-se de Sete Barras pela esquerda, numa rota paralela à estrada de Sete Barras para São Miguel, rota essa coberta pela mata e na direção do vale do Rio Quilombo que corria bem ao norte.

Alguns elementos do seu grupo se perdem no entrevero com a PM e desorientados continuam em direção de Sete Barras, também cobertos por rotas de fugas dentro da mata. Acabam presos e suas armas, que haviam sido escondidas quando se viram isolados, foram recuperadas em algumas operações de varredura.

Todos os que foram presos nesta oportunidade e os que o foram, pouco tempo depois já fora da área, estão vivos, sendo um deles um ex-sargento que havia desertado junto com o ex-Capitão. Seus depoimentos, como de muitas outras "vítimas" da "repressão" são feitos dentro de suas casas, anos depois, já na fase da "guerra das versões". Ou nas suas mesas de trabalho, nos gabinetes dos partidos políticos, dos Poderes da República, das ONG, nas suas empresas, nas redações dos jornais e da televisão, onde podem expor as suas experiências e dar às suas versões os contornos que melhor lhes convém.

O que não deixa de ser uma coisa interessante e uma interrogação pontual para quem se sujeitou a um "holocausto" repressivo, com "milhares" de "desaparecidos", como atualmente se tenta tornar real e onde a brutalidade dos militares seria o lugar comum, dando contorno ao que bombasticamente é chamado de "anos de chumbo"!

O próximo encontro entre os terroristas e alguns elementos do Exército se dá em uma clareira de plantação de arroz entremeada de abacaxi, ao norte da chamada estrada do banco, onde o grupo de terroristas havia sido identificado pela carreira desabalada que esse encontro inesperado provocara. Estavam descansando em uma "tapera" de colheita de arroz. Prova de incompetência militar do ex-Capitão, naquela situação de combate. Restavam, então, na área, cinco deles. Elementos do Exército na margem sul da clareira e os terroristas na margem norte. Nesta altura, já sem o Tenente PM. Nova rota de fuga. Nova mobilização de tropa. Essa foi a constante da operação – fuga e evasão!

Esta estrada era uma perpendicular à estrada de Sete Barras para São Miguel e levava quase que em linha reta a uma fazenda que pertencia ao Bradesco. Ela descrevia, mais ou menos paralela ao Vale do Rio Quilombo, uma linha para onde se deslocaram, agora, as tropas que haviam retornado ao Vale do Ribeira, em função do entrevero com a viatura da PM. Um novo posto de comando dessas operações em Sete Barras e os elementos operacionais, em torno dessas estradas, ao sul e ao norte.

Ao sul e a oeste delas seria resgatado, como veremos, o corpo do Tenente PM. Desse novo encontro, muito fugaz e sem embate armado, os guerrilheiros fogem retomando o rumo norte em direção ao Rio Quilombo, sob a vegetação que se torna mais entremeada ao norte.

Aí, mais uma vez, se prova a intenção exclusiva de fuga, pois, nas circunstâncias, se houvesse realmente intenção de confronto, o efetivo de três ou quatro homens do Grupo de Artilharia Antiaéreo que se envolveu neste evento, era mais que compensador como alvo de ataque, visando causar baixas. Até porque considere-se que a potência do armamento era muito maior no grupo guerrilheiro. Armas automáticas contra armamento pessoal leve ou de repetição.

A história que se descreve nos livros e relatos de "guerrilheiros", que lá possam ter estado ou daqueles que reproduzem seus testemunhos, onde se ressalta a busca de confronto e intenção de infringir baixas e derrota militar às tropas do Exército, em qualquer das fases desta operação, não passam de quimeras com o objetivo de criar mitos e construir valores e instrumental para a "guerra das versões".

Acreditem se quiserem! Elas se tornaram até publicações do Ministério da Educação e das Secretarias da Educação dos Estados, distribuídas às escolas do País, como livros didáticos. Tudo se tornou possível... Em nome da democracia, usam-se seus meios e prepara-se a sua destruição!

Com o mesmo objetivo, eliminaram dos currículos escolares a disciplina de Educação Moral e Cívica, porque ela não estava a serviço de nenhuma vertente ideológica. Ela, sim, não fazia propaganda ideológica. Tratando dos problemas do Brasil absorvia o estudante na cidadania e estimulava a identificação e o fortalecimento da vontade nacional.

Certamente, também, aqueles relatos visam produzir fatos que fundamentem as "razões" para as polpudas indenizações que pleiteiam ao Estado, pela conivência de quem controlou e/ou controla ainda o governo.

Na verdade, esse grupo terrorista aproveitou-se da inexperiência de parcelas de contingentes que não tinham ainda o devido treinamento (uma boa parte com muito pouco tempo de serviço militar e praticamente nenhum adestramento para aquele tipo de operação). Este tipo de operações exigia, além disso, treinamento especializado. Não necessitava de grandes efetivos. Pouca gente do Exército que ali operou, principalmente nesta 2a fase, tinha esse tipo de treinamento. Nem havia tempo para tê-lo, devido o período de incorporação.

Orientados pelos ruídos da presença de tropas regulares, esses terroristas se mantiveram em permanente rota de fuga abrigada na mata. Em nenhum momento, buscaram o confronto militar. Isto só ocorreu com a viatura da PM e por circunstâncias fortuitas. Aliás, cometiam os terroristas, também, falhas freqüentes, impróprias a combatentes aptos à operação de guerrilha rural, como, por exemplo, a mania de não ficar por muito tempo longe das "chibocas" (pequenas vendas caiçaras ao longo das estradas vicinais), onde não resistiam à busca de um enlatado para comer. Alimentar-se no mato e do mato, como seria de se esperar de um combatente treinado, não estava nos seus cardápios prediletos. Isto forneceu inúmeros indícios que poderiam ter-lhes custado caro. Em alguns casos, como na operação tipo "bigorna e martelo" da área do Areadinho, próxima de onde o corpo do Tenente PM Alberto Mendes Júnior foi resgatado, poderiam as tropas do Exército ter conseguido o confronto que, estas sim, buscaram continuamente. Era a lógica daquela operação que se torna evidente, até pela diferença dos efetivos em oposição, nesta altura!

Quando o Tenente PM Alberto Mendes Júnior desapareceu, as hipóteses foram do absurdo ao provável. O absurdo era a de que o tenente fazia parte da insurreição armada, havia facilitado a emboscada e, após, se juntado ao grupo. Dentre as prováveis, uma acabou se confirmando: o Tenente PM Mendes, se tivesse o treinamento adequado (e não tinha) iria resistir aos percalços da condição de prisioneiro (só quem tem treinamento militar específico sabe como é difícil esta condição) e às pressões psicológicas daí decorrentes e, pior, dentro da mata que, por si só, já debilita até o combatente treinado. Empreenderia fuga, se houvesse chance. Ou, seria morto!... Por quê? Porque se tornaria um problema para o grupo, na manutenção do intento da fuga e pela necessidade de ocultação de indícios. À noite, por exemplo, exigiria o desgaste da vigilância de um ou mais terroristas.

Na verdade, esta era a hipótese que os mais experientes viam como a de maior probabilidade. Tinham quase certeza dela. Foi a que ocorreu e de forma brutal, praticada sem o menor resquício de humanidade. Os algozes do Tenente PM Mendes foram os torturadores que se dizem "torturados" e "vítimas" da repressão. Não houve a chance de escapar. Houve um grotesco simulacro de "tribunal revolucionário".

O que ocorreu realmente, precedendo o desfecho, jamais se saberá ao certo, pois a única versão que se pode ter, ainda que chocante, é a de protagonistas vivos. Um deles – Ariston Lucena – fora preso em São Paulo no começo de setembro de 1970. Este elemento foi quem apontou o local onde estava o corpo do tenente. Ariston, como os demais, exceto dois deles, ainda estão bem vivos, até porque, preso, foi protegido pelo Exército de um linchamento que os companheiros do Tenente PM Mendes intentaram, revoltados com o que viram e ouviram daquele terrorista, na recuperação do corpo. Três terroristas se afastaram formando um "tribunal" espúrio, na verdade uma confabulação de sentença de morte, ao estilo de qualquer marginal do "crime organizado", onde o réu não teve direito à defesa, estava amarrado e permaneceu sob a guarda dos outros dois. É a versão.

A coronhadas assassinaram o Tenente PM Mendes. Quem as deu? Naturalmente, foi apontado um que já havia sido morto pelas forças de segurança.

Somente, dois deles estão mortos: Yoshitame Fujimore e Carlos Lamarca.

O primeiro deles, no dia 5 de setembro, em S.Paulo, poucos dias antes da prisão de Lucena, numa operação de caça aos terroristas que haviam escapulido do Vale do Ribeira. As coronhadas teriam sido dadas por ele. Os cinco restantes que foram presos, todos estão vivos. O chefete do tal "tribunal" revolucionário, certamente, era o ex-Capitão, um dos "heróis da democracia".

O que se pode concluir, de concreto, das condições em que o corpo do Tenente PM Mendes foi encontrado é que ele foi brutalmente assassinado com coronhadas na cabeça, após estar imobilizado. Este é o fato irretorquível! Como o é, o que aconteceu com a família do Tenente PM. Nenhum membro dessa Comissão de Anistia lembrou-se dela.

Por força da lei, o Tenente foi promovido post mortem a Capitão. A pensão desse posto – a única coisa que lhe foi devida, também por força da lei – nada tinha ou tem a ver com a anistia. Ela nem existia ainda.

A versão cretina de que ele fora "julgado" por um "tribunal" improvisado na mata, por pertencer às forças de repressão, não resiste a um mínimo de sensatez, seriedade e de respeito à vida. Ela foi divulgada pelos terroristas como meio de propaganda, a partir da prisão de Lucena. O fato não mais podia permanecer oculto. Então foi anunciado pelos terroristas como ato de propaganda. O Tenente PM foi morto, porque mantê-lo, junto ao grupo, dificultava a intenção de fuga, situação que se agravava na medida em que o Tenente Mendes fosse ficando mais debilitado. Liberta-lo poderia redundar em apontamento da rota de fuga ou em indícios sobre ela, pensavam os terroristas, o que não era, na verdade, um fato militar concreto e muito menos justificativa para o massacre ocorrido.

O "julgamento" foi uma farsa para esconder o desprezo e a ofensa mesquinha a um homem indefeso e à vida de brasileiros que discordavam dos meios que empregavam e dos fins que buscavam. A forma do assassinato atendeu a necessidade de executá-la em silêncio. Explica a deturpação das mentes escravizadas pelo fanatismo e o objetivo de criar impacto, a serviço desse mesmo fanatismo ideológico.

É preciso tornar público que esses "julgamentos" foram lugar comum entre os militantes da luta armada. Muitos deles eram realizados contra os próprios membros dessas facções insurretas, acusados de "traições" ou "comportamento anti-revolucionário", com a agravante que, em alguns casos, eram depois atribuídos às forças de segurança e ao Exército, como "desaparecimentos políticos". Essas violências só conseguiram a violência como reação. As do lado da Revolução de 1964 foram "crimes". As do outro, não!

Assim, à medida que as operações se deslocavam em direção ao Vale do Rio Quilombo, ao norte, mais difícil ficou a rota de fuga devido às condições do terreno, onde existiam muitas áreas alagadas. A tendência seria aproximar-se da estrada de Sete Barras–São Miguel na área do Rio Quilombo, o que era outro problema para a fuga. Foi o que ocorreu.

Neste contexto, é que, pelas mesmas razões que já apontamos – treinamento e aptidão para determinado tipo de operação – e por negligência pessoal, uma viatura de suprimento do 2o Regimento de Obuses, cujo Comandante era o então Coronel Leônidas Pires Gonçalves, é abordada pelo grupo remanescente de terroristas, quando se deslocava naquela estrada e é emboscada. Dali, a fuga se completou via São Miguel, sendo a viatura abandonada com os reféns, em São Paulo, onde os "revolucionários" mergulharam de novo na clandestinidade, para reaparecer, depois, em outras ações armadas, até que foram mortos ou presos.

Dos que ali estavam, o terrorista Carlos Lamarca foi morto no interior da Bahia, como registra a história, também cheia de versões que os testemunhos de outros militares possam trazer à luz, em sua dimensão verdadeira. As Forças Armadas devem isso a si próprias e ao povo brasileiro. Desfaçam-se os mitos... na "guerra das versões"!

As famílias dos assassinos do Tenente PM Mendes receberam todos os "direitos" da tal Comissão da Anistia, esse ente gelatinoso cuja mente, olhar e ouvido são tão ou mais facciosos do que os de quem a criou. A do Tenente PM, não! Jamais foi lembrada. Para ela, não há "direitos humanos" e nem ela tem ideologia. A Comissão responsável pela aberração de indenizar um desertor, ladrão e assassino terá agora, por iniciativa do atual governo, ampliadas as possibilidades de contemplar, à custa do erário público, outras tantas "vítimas" do Movimento de 1964, por outros tantos motivos antes não previstos.

Testemunho então: um soldado – o Soldado Roberto Rodrigues Moura – da minha Unidade, prestando serviço militar obrigatório para o qual havia sido convocado em 1970 é enviado pelo Exército para combater terroristas naquela operação. Acidentou-se como motorista de viatura, em circunstâncias que o isentam totalmente de culpa, tanto que foi absolvido na Auditória Militar. Ele perdeu 90% de uma das vistas e recebeu do Estado, depois de quatro anos de tratamento, um certificado de isenção do serviço militar, podendo prover os seus meios de subsistência. Ou seja – recebeu coisa nenhuma!

Nem por isso você encontra, hoje, nesse homem, desamor à sua Pátria ou ao Exército. É um exemplo de cidadão. Essa comissão, de duvidosa conduta, tutelada por interesses de toda ordem, menos os que se continham no espírito da anistia, certamente jamais tomaria conhecimento dele. E se tivesse tomado de nada adiantaria. Ou há dúvidas sobre isso?

Com a palavra os que tem conhecimento desse fato, em todos os escalões militares, na Ativa e na Reserva.

Assim, se encerrou a operação no Vale do Rio Ribeira do Iguape. Mas, cabe ainda umas poucas advertências, neste episódio.

A primeira é que ao soldado cabe, em princípio, cumprir ordens. Um exército não é uma bancada de parlamentares a discutir soluções para um problema ou para o cumprimento de uma missão que lhe seja afeta. Muito menos objeto de barganhas onde prevalece "o que eu levo nisso" ou "o que é o melhor para mim".

O confronto armado não é a sala de audiência de juízes e nele nem sempre o império da lei dirige os atos de sobrevivência dos homens. Numa "guerra", seja ela qual for, sempre haverá perdas humanas e atos de extrema violência. Nela, a missão militar tem um objetivo imutável. É claro e único – vencer! Mas, para vencer é preciso que os comandantes e a tropa estejam preparados e esse preparo exige a adequação dos meios e dos homens à missão. Para isso, é preciso estar treinado. Esse é o dever de qualquer exército – adestrar-se! Para isso são necessários recursos e vontade férrea. Ao Estado, cabe prover esses recursos e aos comandos essa vontade. Ela deve ser transferida aos combatentes.

A segunda é que a família do Tenente PM Mendes não foi "indenizada" por nenhuma "comissão de anistia". Nem ela e nem nenhum soldado que esteve cumprindo o seu dever, em todo esse tempo e em todos esses acontecimentos. Seu único direito foi receber o seu corpo esfacelado, como resultado do esforço em recuperá-lo, por ser alguém que havia cumprido ordens e dado o máximo de si em sua missão, com os meios que tinha. É bom não esquecer – o Tenente agiu para poupar as vidas dos seus soldados! É o que o Exército sempre fez, antes, ali e que iria se repetir, no futuro, em outros episódios, como em Xambioá. Resgatar seus homens da sanha odiosa e do fanatismo ideológico. Torturas e mortes que nunca apareceram na mídia, como se, de um lado, estivessem os santos e, do outro, os demônios.

Seguramente, a maior indignação dessa família e de quantos tenham um resquício de justiça, entre os valores da cidadania tão em voga nestes tempos, é a de que sua vida foi tirada por um "justiçamento" falacioso, num "tribunal" espúrio, usado como propaganda ideológica e esse "crime" não só ficou impune, como os criminosos foram chamados de "heróis da democracia" e indenizados.

E o que é mais grave – assim chamados por eméritos homens do Direito que ocuparam e ocupam cargos de relevância nos governos, a partir de 1990! Aparentemente em nome não se sabe de que, mas que, na verdade, se sabe muito bem!

A terceira é a de que toda verdade histórica terá um dia que vir à tona. Não para servir a esta ou aquela vertente ideológica, mas para que a anistia cumpra o seu papel histórico de unir os brasileiros, em nome da causa maior que é o Brasil.

 

Alguns críticos da Revolução alegam que a falta de canais para a manifestação dos opositores ao regime provocou a luta armada. O senhor concorda com esse ponto de vista?

Não. Não é verdade. Todo processo revolucionário se reveste de poderes de exceção. Esses poderes de natureza supraconstitucional não foram o fator determinante das reações armadas ocorridas. Elas foram uma decisão político-militar da esquerda ou de parte dela e eram coerentes com os dogmas dominantes no período da guerra-fria. Eram coerentes com a ideologia comunista, portanto, no caso.

Da mesma forma que os apoios políticos a esses instrumentos de exceção, o foram, na outra vertente. Nasceram dela e de decisões de nacionais com ela envolvidos e apoiados por fontes externas. A iniciativa foi dos derrotados pelo Movimento de 1964 e, sob os seus vários aspectos políticos e/ou militares mais relevantes, a explicação acabei de abordar na questão anterior, penso eu.

 

Quais os objetivos da luta armada desencadeada no campo e na cidade e onde buscavam a orientação e o apoio externo?

O objetivo imediato era o enfraquecimento do regime de governo instituído pelo Movimento de 1964 e o apoio externo vinha dos países comunistas, não só apoio financeiro, mas de orientação e comando político e também de treinamento militar para contingentes de militantes das diversas organizações. As centenas de livros escritos por esses militantes deixam isso muito claro. São uma fonte irrecusável.

O interessante é que, apesar disso, as versões continuam a fluir na opinião pública, como ocorreu no primeiro trimestre de 2004, cobrindo os 40 anos do Movimento de 1964, maciçamente na mídia, como se aqueles inúmeros livros e seus conteúdos não existissem. O silêncio é o melhor cúmplice dessas versões, com raras exceções!

O esforço ideológico que tenta perpetuar essas versões existe desde o primeiro momento que a "abertura" vislumbrou a transferência do Poder e se intensifica toda vez que esse Poder deixa de responder aos anseios do povo ou sofre revés político nas crises que nos acompanham desde então.

O objetivo de médio e longo prazo era e continua sendo um único – o poder político, agora já numa versão gramscista, uma vez que o mundo comunista ruiu em estados não soviéticos e intensas mudanças ocorreram nas suas economias e nas de países que ainda estão sob esse regime.

 

O AI-5 foi necessário? Qual a sua opinião?

É muito difícil analisar sob a ótica de uma necessidade imperiosa para manter os rumos de uma contra-revolução da natureza do Movimento de 1964 ou se havia outros instrumentos que poderiam ter permitido o controle da insurreição armada que estava se instalando no País. O que é certo é que, se não estivesse se instalando a insurreição armada, o AI-5 não teria existido. Ela foi a causa do Ato Institucional. Qualquer outra estória não é história.

Também não há como negar que poderes de exceção dão aos homens mais poder que o desejável num estado democrático. Todo poder discricionário é uma arma para reis sábios e para estadistas verdadeiros. Nenhum rei sábio ou notável estadista da história, entretanto, foi capaz de impor limites às projeções de nenhum tipo de poder discricionário! Não há como negar, também, que o Ato ajudou a derrotar a reação armada e só afetou a parcela da população envolvida no confronto, com as exceções que a natureza humana se encarrega de burlar, no poder de polícia do Estado.

Era um ato de exceção constitucional. Não há como negar. Pertence ao repositório da história e não mais aos objetivos ideológicos. Pode-se até pensar na sua não ocorrência no futuro, mas não na sua fatalidade histórica. Ela já ocorreu!

Até porque nos regimes totalitários, o mundo nos conta a que limites chega esse tipo de poder. O bloco comunista não é boa vitrine e nem bom exemplo de sabedoria ou de grandeza no uso de poder de exceção. As milhares de vítimas que produziu negam-lhe esses predicados.

 

Hoje em dia, muito se fala em "ditadura militar", "anos de chumbo" etc. O que o senhor pensa a esse respeito?

É a versão sobre os "réus da história". É a distorção dos fatos a serviço da ideologia e do poder. É a "revanche dos vencidos" na formulação da opinião pública e até no ensino nas escolas, todos ainda submetidos a seus dogmas ideológicos. É da natureza do poder e de quem o ocupa. Não há santidade, ilusão ou novidade histórica nisso. A pergunta que deveria ser feita é como as Forças Armadas, eximindo-se de suas responsabilidades históricas, vêm ouvindo em silêncio isso tudo e permitindo que até seus desertores, assassinos e traidores viessem a ser indenizados, reabilitados e reverenciados como heróis da democracia? Como esperar que os anos não tivessem sido "de chumbo" e que a "ditadura" não fosse "militar"? Como fazer emergir a verdade histórica neste contexto? Assim será por longo tempo. Quiçá... para sempre. O futuro nos dirá...

 

Julga o senhor que a Revolução muito se demorou no governo do País?

Outra questão de difícil resposta pela complexidade das variáveis. Responder afirmativa ou negativamente é uma simplificação histórica. O que se pode dizer com toda a segurança é que, se não tivesse havido a luta armada, certamente teria sido menor o período de exceção, bem como a intensidade e natureza dos seus mecanismos.

O fato é que o processo revolucionário se desviou do caminho original quando o general-presidente passou a interpretar que era um Presidente da República eleito e não um Chefe de uma contra-revolução que governava, com poderes supra-constitucionais oriundo dos quartéis. Isto implicava no funcionamento normal dos Poderes do Estado e da estrutura política e de suas relações, sendo necessário ao processo revolucionário, em particular para fins externos. Justifica-se na história do País. Mais, ainda, era necessário para devolver o País à democracia plena, o que sempre foi o objetivo do Movimento de 1964.

Aquele comportamento, que decorria daquelas necessidades políticas, associou-se a um processo autofágico no meio militar, decorrente dos fatos que envolviam a "guerra interna" e a luta armada que se instalara. O ônus dessa luta ficava com as Forças Armadas e a cooptação da elite política com o ocupante do Planalto. Uma coisa se distanciava da outra em razão de suas próprias dinâmicas e objetivos . Essa fórmula criou muitas "vítimas" entre os Chefes Militares. Aliás, criou vítimas e réus em todos os escalões e em todos os lados, até depois de encerrado o ciclo.

O principal fundamento de descontrole daquelas dinâmicas sedimentou-se com base no fato de que o governo e a área de apoio político eximiam-se de interferência nas ações contra a luta armada, só o fazendo quando os fatos atingiam suas imagens, a área política exercia pressões em função de interesses eleitorais, ou quando emergiam interesses de grupos de poder nos processos sucessórios. Ou, ainda, quando havia alguma repercussão externa dos eventos que ocorriam internamente. Nisso tudo, a oposição política legal fazia o seu papel, explorando os acontecimentos nacionais, a seu favor, em cada fato. Era inerente ao jogo político.

Do seu lado, a luta armada que até então situara-se relativamente isolada da população, passou a permear na oposição política legal, enquanto experimentava derrota no campo militar. Nesta oposição legal, ela encontrou apoio amplo, ainda que não irrestrito.

Quando a economia passou a ter problemas, primordialmente em função de fatores externos – as crises do petróleo e a reciclagem dos investimentos estrangeiros, em particular os de natureza financeira, com uma agressiva elevação dos juros internacionais –, os articuladores políticos desses segmentos de oposição, de imediato, intensificaram suas ações e ampliaram seus objetivos.

Essas circunstâncias favoreceram eleitoralmente a oposição legal e os segmentos da luta armada intensificaram, principalmente nos meios urbanos, as ações de "guerra psicológica" e atos de confronto, em qualquer oportunidade, na vida do país. A insurreição armada, em particular as tentativas no meio rural, havia sido praticamente sufocada.

Novamente, o esforço de controle recaiu sobre os órgãos de segurança do Estado, nessa mudança de postura. Quase todos eles estavam sob algum controle das Forças Armadas. Essa sinergia acabou criando um triângulo de confrontação, no qual a oposição política fazia o seu papel institucional, ao mesmo tempo que respaldava sub-repticiamente os segmentos que haviam optado pela luta armada. Esses órgãos de segurança e o governo do outro lado se distanciavam com enfoques excludentes da situação interna do País, trilhando caminhos diversos, agravando divergências de objetivos que eram inerentes às suas próprias dinâmicas. Isto afetou profundamente o meio militar, em particular na formação das lideranças e chefias.

O episódio da demissão do Ministro do Exército – General Frota – foi conseqüência traumática desse fenômeno e é uma prova viva e irrefutável do que se afirmou sobre interesses de grupos de poder no processo sucessório, sobre a crise econômica e o sucesso eleitoral da oposição que o conluio desses fatores propiciou, apoiado pela intensa infiltração da esquerda que ganhava espaço. A oposição política legal abrigou o enorme, difuso e amplo leque que constitui "a esquerda" no País.

Isto enfraqueceu o regime, cuja sustentação imutável vinha dos quartéis e a mutável da opinião pública. A crise econômica do último período de 1964, foi o fator derradeiro para o desapoio do povo. Essa crise teve a ver, pelo menos em grande parte, com a incidência de interesses externos que haviam mudado radicalmente o fluxo de recursos externos para o Brasil, em particular os empréstimos financeiros. A reciclagem dos "petrodólares" ocorreu, mudando severamente as condições daqueles empréstimos.

Faltou, como se pode depreender, a visão de Estado necessária para levar a efeito uma "abertura", sem os desastres sucessivos impostos até hoje ao País, pois o Poder tem seus encantos e esses encantos burilam os grupos de interesses! Os capitais externos, por sua vez, promovem seu próprio caminho e as crises cíclicas que nos atingem, ao sabor de seus interesses exclusivos. Coisas que se sobrepuseram no período.

É necessário considerar, entretanto, que uma transição pacífica para um regime constitucional pleno, naquelas condições e circunstâncias, exigia cuidados e um grau de pragmatismo político que demandava o necessário controle do poder. As linhas da história nem sempre são as que desejaríamos para o País... E não foram!

 

Ao tempo dos governos revolucionários, acha o senhor que as Forças Armadas se aproveitaram da situação para auferir vantagens de qualquer ordem?

Seguramente, não. As Forças Armadas como Instituição Nacional não tiveram qualquer benefício por dar sustentação ao regime e muito menos tiveram satisfeitos seus interesses organizacionais, em detrimento do restante da Nação. Quem viveu as entranhas do chamado "poder militar" de então, sabe bem o que pairou no seu meio. Se por um lado muitos militares assumiram funções civis para colocar em marcha os projetos que nos tornariam a 8a economia do mundo, os quartéis viveram a eterna e rústica realidade – a sobriedade orçamentária, a contenção salarial e uma vida quase que monástica.

Nem mesmo certas necessidades estruturais, referentes ao sistema logístico, de planejamento de defesa ou de sistema de armas, foram atendidas nos níveis desejáveis. Sob este ponto de vista, nunca os militares se aproveitaram de qualquer intervenção moderadora que tenham realizado ao longo da história política.

Em 1964, a dose se repetiu até com mais rigor. Em compensação, todos os ônus e a responsabilidade por possíveis erros, distorções ou pelos "crimes" recaíram sobre elas e sobre vários de seus membros, sem que um único setor ou personagem da sociedade civil tivesse assumido a responsabilidade por nada, no futuro, até hoje. Foram e são todos, sem exceção, eméritos e convictos "democratas" ou meros asseclas de grupos políticos. São sobreviventes, tão alheios quanto possível e tão permeados nos novos tempos quanto lhes convêm. Ainda que a democracia seja puramente formal...

 

De sua experiência pessoal, que avaliação o senhor faz dos vinte anos de Governo da Revolução?

Tive-as, com certeza, essas experiências, até porque servi ao Exército por 35 anos, sendo alguns desses anos na Presidência da República. Avalio que, ao escreverem a história como queiram essas vertentes e seus próceres, se o fizerem com um mínimo de submissão à verdade, admitiriam que tínhamos criado as condições para o salto de poder que poderia ter sido dado como nação, apesar de erros de governos que foram cometidos. Toda a infra-estrutura econômica criada e que foi destruída na era FHC (a rigor iniciada antes mesmo desse período e nele levada a extremos), com base em exposição de motivos que pretensamente traduziam razões de Estado, nos davam essa condição. Essas razões elencadas nada mais eram que falácias e mentiras ministeriais e que estão arquivadas nos anais do Poder Legislativo, para quem quiser comprovar. É só comparar o que disseram naquelas exposições de motivos justificando a mudança da ordem econômica constitucional, com o que fizeram e com o resultado que existe hoje nos setores atingidos. Disseram uma coisa e fizeram outra. Os resultados estão aí.

Os governos da Revolução não só nos colocaram como 8a economia do mundo, como deram aos seus sucessores os meios para gerir, desde que houvesse competência para a gestão pública, os destinos da Nação e os negócios do Estado. No entanto, a desastrada ação dos governos posteriores puseram tudo a perder.

A derrocada, paradoxalmente, veio com a reconstitucionalização, portanto! Não que a democracia e o regime constitucional sejam óbices ao progresso ou regimes ineptos para o desenvolvimento e para a redução dos nossos graves problemas sociais.

Foi a incompetência da esquerda para essa gestão, ao conquistar o poder, que nos jogou, às cegas, nesta globalização, que nada mais é que o mesmo e eterno mecanismo de projeção de poder de estados fortes sobre estados fracos. Projeção de poder com novas roupagens e artifícios que lhe deram, não só o ar de miragem do paraíso, mas de paraíso único, muito ao feitio da monopolaridade hegemônica que emergiu no pós-"guerra fria". O que ela promoveu foi uma brutal e ampla invasão econômica. Coisa, aliás, que a direita, também, já produzira antes, mutatis mutandi com a mesma incompetência.

Tivemos por aqui, mais fiéis que os ideólogos e construtores dessa nova ordem, os Calabares, modernos tupiniquins, prontos a fazer mais do que lhes era exigido. Sem exceção, esses cônsules da nova onda têm uma característica comum – esquecem de tudo que pregaram a vida inteira... Estão por aí pleiteando o voto do povo, sem responsabilidade nenhuma pelo que fizeram, em nome desta nossa democracia, nem sempre tão democracia assim!

Por tudo isso, estamos onde estamos! Esta é a avaliação mais simples e objetiva que se pode fazer. A situação do País de hoje a comprova. Dispensa outros argumentos.

 

O que gostaria de abordar com relação a sua permanência na Presidência da República como Assessor do Sistema de Comunicação Social do Governo Federal?

Vou me ater aos fatos que dizem respeito, direta ou indiretamente ao processo revolucionário. Até porque essa passagem envolve uma enorme quantidade de acontecimentos críticos e de experiências deles decorrentes. Tenho, portanto, que escoimar deste testemunho aquilo que não se relaciona com o processo da Revolução de 1964. Na verdade, pelo cargo que ocupei e pelo fato de que fui servir na Presidência da República, em função do que antes afirmei – não havia me ajustado bem ao que ocorria no processo revolucionário e no meio militar. Fui para lá pelo fato de ser militar. Estranhamente convidado para a função na Assessoria de Relações Públicas, pois na época era alvo de acompanhamento pelo sistema de informações, em função de todos os acontecimentos que as circunstâncias me envolveram e uma vez que em nenhum momento exteriorizei apoio ao governo do Presidente Geisel ou com ele mantive aproximações e nem meus atos naquele momento motivavam tal convite. Nem era o caso. Eu era um simples Major do Exército.

Essa Assessoria fora recriada por decisão do governo, com a missão de gerar informações institucionais úteis ao povo, reeditando uma experiência bem sucedida do governo anterior. Na verdade, agradeci ao Coronel do Exército que me convidara e até desaconselhei o encaminhamento do convite, para evitar problemas, considerando o que eu havia feito e o meu modo de pensar. Isto tudo interporia óbices ao governo, com uma árdua tarefa pela frente, e mesmo no cumprimento da missão para a qual me convocaram. A este que me convidara para a função – o Coronel José Maria de Toledo Camargo – expus certas divergências e até preocupações com o processo revolucionário de 1964. Combinamos que ele verificaria essa situação e a ele caberia a decisão, fosse ela qual fosse. Havendo restrições, o convite teria outra direção. Respondi-lhe que o convite, por si só, já era dignificante. Bastava aquela deferência e já me sentia recompensado. Ele não precisaria confirmá-lo. Eu entenderia.

A natureza dessas preocupações e discordâncias estão explicitas no curso deste depoimento, na forma mais impessoal e honesta possível. Havia ocorrido, naquela ocasião, o episódio com o General Ednardo D’Avila Melo, então Comandante do II Exército. Este oficial-general era um homem digno e um bom soldado que viveu ele próprio as suas circunstâncias de comando, mas jamais seria um conivente com torturas ou assassinatos. Sobre ele desabaram os efeitos da dinâmica da luta armada. Eu acompanhei esse episódio de perto, em todas as suas nuances, como Oficial de Informações da 11a Brigada de Infantaria Blindada (11a Bda Inf Bld), em Campinas, recém-saído da Escola de Estado-Maior, ainda no posto de Capitão. Repetia-se, assim, o dilema que tanto me afetara antes.

O fato é que com a aquiescência da Presidência da República (que eu julgava improvável) e a minha concordância posterior, lá fui servir, após ter discutido o assunto e consultado companheiros com quem mantinha ligações, desde quando estava na tropa pára-quedista. Meus laços eram os mesmos e as minhas convicções também.

Acho até que por isso fui absorvido nesse alto escalão, porque ali havia pesos em jogo. É o que mostrou o futuro, salvo melhor juízo.

Pois bem. Lá exerci uma função civil de natureza técnica – a publicidade institucional – que era emitida pelo governo, como uma de suas ações de informação. As outras fontes, de natureza semelhante, eram as Assessorias de Imprensa no âmbito do governo e de seus órgãos subordinados.

Havia uma política de governo aprovada que regulava a ação na minha área. Ela continha três parâmetros básicos: O primeiro era a impessoalidade. Ela não podia promover pessoas do governo e nem mesmo a figura do Presidente. O segundo – a economia de meios e recursos. Operava-se com orçamentos infinitesimais, se considerado o volume de recursos geridos pelo governo como um todo e se relacionados com o porte da tarefa. Perto do que os governos gastam hoje com publicidade, esse orçamento seria uma piada, considerada como uma "mentira" orçamentária. O poder de concessão do Estado facilitava os meios de mídia a serem usados. Os mecanismos de exceção, também. Terceiro – a objetividade que se resumia a dois propósitos subsidiários – a publicidade deveria servir à educação e ao esclarecimento do povo em suas próprias necessidades, em questões importantes. Quando tratasse de obras em benefício do povo direta ou indiretamente, a comunicação institucional que as divulgasse teria como limite a obra em si e o seu efeito para o desenvolvimento do País.

Esta política não só nos deixava livres de restrições de ordem moral e dentro de limites muito éticos na tarefa a realizar, como me convencera da sua validade e da sua eficácia, para o bem do País. Era coerente com os mais sadios intentos do Movimento de 1964.

Excluíam-se as manipulações, as despesas astronômicas e o marketing político que se tornaram tão pródigos como concessivos, nos processos eleitorais, hoje observados, desde a "abertura".

Assim, esta função me propiciou observatório oportuno, senão tão privilegiado, mas suficientemente abrangente. Integrado ao Gabinete Militar e às Subchefias das três Forças Militares, que eram o seu eixo estrutural, devido à nossa origem militar e exercendo atividade relacionada com a área civil do governo.

Integravam o sistema de comunicação social, do qual eu era o Subchefe, todos os órgãos similares dos ministérios, de órgãos da administração direta e indireta e das empresas a eles vinculados. Não em caráter de subordinação, mas de coordenação e cumprimento daquela política de comunicação social.

Esse observatório foi tão diário, como solitário e independente, só sujeito àquela política de comunicação, formalmente estabelecida. O modelo funciona até hoje, exceto quanto aos limites éticos que existiam e já não existem há muito tempo. Hoje, o símbolo de um partido político identifica um prédio público do mais alto escalão da República, como se fosse a sua sede. Uma aberrante confusão de simbologias do Estado Nacional e de um dos seus poderes constituídos com organização partidária. Logo, a Bandeira entrará nessa simbiose inadmissível.

Além disso, também por força da função, essa observação se estendeu às áreas de mídia (rádios, TV e jornais) e às ligações com a área das empresas de publicidade e produtores autônomos nacionais. Desses últimos, muitos deles, hoje bem sucedidos, foram apoiados, pelos seus méritos, pelo Governo, de forma limpa e através de licitações sem vício de espécie alguma.

Indiretamente, também, a observação tinha ligações permanentes no Poder Legislativo, em função dos muitos atos de governo que para ali convergiam e dali se refletiam. Estas observações acabaram, por força dos fatos, se concentrando, na movimentação dos grupos de poder que integravam a estrutura de governo, na área militar de onde eu vinha e nos meios políticos, refinando-se em agudeza nos processos sucessórios, tanto nos Estados federados, como na própria Presidência da República.

Era para onde se focavam na pressão dos fatos, inevitavelmente, até porque ocorriam fatos políticos graves, como o fechamento do Congresso, ocorrido em 1977, em razão da reforma da magistratura. Dela, nasceram os governadores e senadores biônicos, um dos mais controvertidos atos do processo revolucionário. As escolhas biônicas, por vezes, se revelaram desastrosas! Algumas tiveram que ser revertidas à fórceps e seus efeitos só não foram piores e prolongados devido aos próprios mecanismos de exceção.

Com relação ao Congresso, em que pese a vigência do processo revolucionário e dos controles que os mecanismos desse processo forneciam ao Executivo sobre Legislativo, as minhas observações consolidadas indicavam que este último era um "enorme e amplo balcão de negócios". Há milhares de fatos que poderiam ser citados para comprovar essa assertiva. Há na afirmação uma intenção de denegrir o Parlamento? Não! É que era assim, como é assim até hoje.

Havia uma espécie de Conselho Político informal, exercido pelos líderes que o Presidente considerava confiáveis. Eram os sete homens de "ouro". Com exceção de dois deles, todos estão vivos e certamente preferem não falar sobre a Revolução de 1964. Dela desertaram. Nunca os vi a ela se referirem publicamente. São outros, agora, os seus perfis, seus argumentos políticos e suas "crenças". Suas condutas políticas, nem tanto.

Estes homens influíam nos rumos e nas decisões de governo, em nome de suas bancadas parlamentares e do único partido que representavam, muito mais que qualquer chefe militar. Todos mantinham cordéis diretamente ligados à Casa Civil, aos Ministérios e às suas bases políticas nos Estados.

Aliás, os que menos influíam eram os ministros militares. Mesmo nas decisões que estavam sob o crivo direto das Forças Armadas por força da legislação em vigor, como era o caso das Comunicações e dos Transportes, onde as necessidades de segurança interferiam no processo de decisão governamental, nada teve curso, mesmo diante dos pareceres, planejamento e iniciativas dessas Forças, sem que o aval da área política o chancelasse. Em muitos casos, as soluções iam, como foram, na direção contrária do que desejavam as Forças Armadas. Muitos fatos comprovariam essa afirmação, como foi o caso da substituição do sistema de tropo-difusão nas comunicações sobre a região amazônica. Isto seria normal num regime constitucional. Era no mínimo estranho, num regime com origem nos quartéis. A sustentação desses governos poderiam ter seu fundamento nos quartéis, mas absolutamente não os seus atos.

Por isso, acho até engraçado quando hoje se fala em "ditadura militar". Pode-se até se falar em "ditadura", como quer a esquerda, diante do silêncio conivente de seus oponentes de outrora na área política, mas em "militar" – o adjetivo soa apenas como um jargão que nada tem a ver com aquela realidade histórica.

Quando os fatos exigiram do Governo decisões complicadas, como no caso da ruptura do Acordo Militar Brasil-EUA, aí o Governo se apoiava exclusivamente nas Forças Armadas e a área política ficava preservada dos espinhos do ato.

Com relação à mídia e suas diversas empresas, quando se iniciaram os primeiros passos da "abertura", e mesmo antes, se podia perceber claramente o nível em que a infiltração ideológica chegara. Havia, sobrepondo-se a ela, um confronto latente natural entre a liberdade de imprensa e a natureza intrínseca do Governo. Este confronto emergia de forma múltipla e intermitente. Mas, em alguns casos, havia até conivência entre próceres do Governo e a imprensa e entre aqueles e elementos da esquerda, como era notório e inegável entre a esquerda e a imprensa.

Isto era inerente à dinâmica do Governo. Não era tão bem compreendido na área militar.

Todos os atos que iam em direção da "abertura" recebiam matéria e editoriais favoráveis, mesmo de jornalistas considerados à "esquerda". Atos de governo, mesmo os de grande repercussão, como a hidroelétrica de Itaipu ou fatos e conseqüências das duas crises do petróleo, recebiam questionamentos de toda ordem na imprensa.

As ações dos serviços de informações e os dirigidos contra a subversão nem se fala. A contestação era permanente, imediata e muitas vezes facciosa. Mas, estes atos tinham que ter seqüência, pela inexorável imposição dos fatos e o governo não os coibia nem era seu objetivo coibi-los. Seu objetivo era torná-los palatáveis e dentro de certos limites, o que nem sempre acontecia, pela natureza da tarefa e pela forma de atuação do chamado "inimigo interno".

Portanto, o Governo era um ser sujeito a uma dinâmica e o processo revolucionário de 1964, sujeito a uma dinâmica diferente.

Mas, prosseguindo na direção política que havia escolhido a distensão gradual e segura, o Governo quando muito adotava retaliações de ordem financeira, como excluir empresas de mídia de uma licitação ou negar financiamento do BNDE, o banco de fomento da época, o BNDES de hoje. O Governo Geisel não fechou nenhum jornal e praticamente eliminou a censura prévia.

Um governo, por mais monolítico que tente ser, tem faces múltiplas. A imprensa, também, é, por sua natureza, um ente com múltiplas faces e onde subsiste diversas fontes de pensamento e opções políticas. Mídia e profissionais da área se atribuem uma condição acima do bem e do mal. Isto configura o que se chama de Quarto Poder...

Às vezes, o mesmo jornal as manifesta até numa mesma edição. Ela é imprescindível na vida de um país, gostemos ou não de seus métodos, nem sempre éticos e nem sempre traduzindo a verdade na informação e muito menos dando-lhe a abrangência necessária, coerente com os seus próprios padrões jornalísticos. Mas, é muito pior sem ela ou com ela a serviço de regimes totalitários e de interesses escusos ou não nacionais!

No âmbito dos meios castrenses, isto era recebido como uma interferência perigosa no processo revolucionário, até porque a luta armada ainda estava ativa e a infiltração ideológica identificada em quase todas as instituições, inclusive em governos estaduais e partidos políticos, alimentando o confronto.

Por outro lado, algumas coisas que não tinham muito parentesco com a austeridade, chegavam muito próximo de homens de governo, principalmente, nos ministérios civis. Isto irritava a área militar e caracterizava um "desvio revolucionário". Algumas posturas de parte da área militar, por sua vez, irritavam o Governo. Muitos fatos ocorreram e que poderiam situar este ângulo da questão. Eu vivi um deles diretamente, na tal "Campanha da Pechincha", ocorrido de forma surpreendente, esbarrando em minha mesa de trabalho e com patrocínio discutível e de lisura no mínimo duvidosa de um ministro de estado.

Essa campanha contrariava a política de comunicação social a que fiz menção frontalmente e se constituía em uma "armadilha" política para o próprio Governo, diante de uma inflação que começava a criar problemas na economia como um todo. No tal campanha, o erro de objetivo e mesmo de público-alvo era grosseiro. Era, na verdade, a culpa da inflação atribuída ao preço sazonal de um determinado legume. Metidos em seus meandros, estavam desde deputado da oposição, até homens de mídia e interesses empresariais. Na origem, relações regionais e de amizade. Vizinhanças e tráfico de influência dos quais o processo revolucionário não foi imune.

É interessante notar que um deputado oposicionista que fora preso em uma das "operações gaiolas" devido a sua atuação política (certa ou errada a causa ou certo ou errado o ato) é que vai ao Palácio da Alvorada "vender" a campanha, reforçando os seus próprios interesses de família e das empresas de mídia, diretamente ao Presidente da República com aval do ministro, enquanto fazia o "jogo" do governo no parlamento, mistificando seu papel oposicionista. O dinheiro, como hoje se vê profusamente nos fatos do noticiário nacional, já era um dos amores da "esquerda", como era uma das paixões da "direita". Esquerda anticapitalismo, mas a favor da moeda... no seu bolso. Exatamente como hoje se vê pelo País inteiro, apesar das ações do Ministério Público.

Cito o fato, não porque ele tivesse significativa importância no quadro gigantesco de dificuldades macroeconômicas do País, mas para caracterizar o tal triângulo de confrontação a que me referi e como as coisas ocorriam na área política. Inicialmente, 70 milhões (em moeda daquela época) do Banco do Brasil iriam fluir dos cofres públicos para bolsos privados, nesse episódio. Acabaram em 20% disso, o que não lhe reduz, em absoluto, o pecado de origem.

Aliás, é como o "balcão de negócios" transforma, até hoje, o dinheiro público em dinheiro privado que voa para os paraísos fiscais. Desde a esfera federal até os quase 6.000 municípios brasileiros. Não há exceção. Os fatos estão aí.

Além disso, esse uso extrapolado de recurso, em montantes absolutamente fora de propósito (dez vezes o orçamento de comunicação social da Presidência para o ano inteiro, atribuídos para uma única campanha publicitária de 200 segundos na TV, com 14 filmetes de 15 segundos), era fruto das relações de governo com a mídia, na direção da "abertura" e função das dificuldades do Governo na área econômica.

Na Assessoria onde trabalhei, um filmete de 1 minuto custava, em média, 30 mil (também em moeda daquela época). Pode-se comparar, portanto. A investida da área de mídia, por conseguinte, poderia até servir ao "balcão de negócios" a que me referi, na Comissão de Economia e Finanças da Câmara de Deputados ou a outros interesses menos transparentes de grupos ou pessoas, mas nunca à essência da comunicação institucional do Governo, tal como ela era concebida. Ele é um exemplo microscópico de que a dinâmica do Governo não era necessariamente coincidente com a da área militar. Nem seus métodos nem os direcionamentos das relações da área pública. Eram meios, razões e objetivos diferentes que alimentavam essas dinâmicas.

As responsabilidades do Governo eram muito amplas e sérias. Os homens precisariam estar à altura delas. Nem sempre todos estavam. Da mesma forma, na área militar, eram críticas e difíceis e nem sempre se ajustavam plenamente aos objetivos do Governo. Aí, está a dinâmica das divergências no processo revolucionário.

As manobras espúrias desse episódio que destacamos e as personagens dessa história a nada servem, exceto para mostrar um importante fator de distanciamento entre o governo e os meios revolucionários que ocorria em muitas áreas. Nos processos sucessórios, isto se agravou e muito. Neles, alguns setores militares jogavam as cartas da luta contra a subversão.

Essas preocupações, na verdade, nada tinham a ver com a "redemocratização", contra a qual jamais as Forças Armadas se opuseram como Instituição e onde muita gente já a julgava não só tardia como necessária. O problema estava, na verdade, no como realizá-la e como conter os fatores que a dificultavam.

Com relação aos processos sucessórios, vou me ater ao que assisti. A sua engenharia básica partiu de uma nova realidade desse processo e residia no fato de que já não era a área militar que decidia essa sucessão. Com a do Presidente Médici, ainda foi assim. Quatro anos depois não era mais. Embora houvesse escaramuças em torno disso na área militar, pelas razões já explicitadas, todos os condicionamentos que incidiam sobre o processo revolucionário davam ao Presidente poderes suficientes para controlar a sua sucessão. A "abertura gradual e segura" era uma dessas alavancas de poder. Ela trazia até próceres importantes da oposição legal em apoio ao Governo, contra setores militares.

As fissuras que o combate à luta armada levara aos quartéis, atingindo chefes militares, reforçava a mudança. Grupos de interesses nos quartéis e no sistema de informações, argumentando que os riscos eram grandes com o que ocorria, particularmente os de ressurgimento da luta armada, movimentavam a linha sucessória que muitos sabiam em quem recairia, para prosseguimento do gradualismo e da segurança política necessária, ao projeto da "abertura". Só o Chefe do Gabinete Militar – General Hugo de Andrade Abreu – acreditava no descompromisso do Presidente com a sua sucessão e nele depositava a garantia de que o melhor para o País seria levado em conta e que para isso a área militar seria novamente ouvida. Este seria o compromisso do Presidente com ele, desde a demissão do Ministro do Exército. Portanto, acusar esse militar de pretensões presidenciais sempre foi uma inverdade, seja qual tenha sido a sua fonte. Ele mesmo já pensava em um nome civil.

Partindo de testemunhos que geraram e ainda geram livros de "historiadores", nem sempre confiáveis ou que basearam seus escritos em testemunhas não isentas e sob a ótica visivelmente eivada de parcialidade de documentos ou declarações de assessores e sem a necessária isenção histórica, muita agressão restou às Instituições Militares, injustamente.

Estes fatos e versões é que desenharam e montaram a cadeira dos "réus da história". Quase todos os livros recentes, enquadrados pela visão da "esquerda", ainda que baseados em testemunhos e documentos de auxiliares do próprio Governo Geisel e dele próprio, sofrem desse pecado original. Podem ser válidos, como a leitura de todo livro assim é, como fonte de conhecimento, mas não tem o compromisso embrionário e sólido com a verdade. O que mais me perturba neles é o desrespeito de determinados militares pelos seus companheiros de farda, se é que eles reproduzem fielmente o que teriam dito os entrevistados.

Caminhemos, então, para o epílogo que enterrou o processo da Revolução de 1964. Este confronto triangular, portanto, se tornou inevitável entre alguns setores militares, o Governo e ambas as áreas políticas, tanto a situação como a oposição.

Por razões hierárquicas, ainda que nunca tivesse praticado um ato sequer ou tenha dito uma única palavra que insinuasse uma candidatura oriunda dos quartéis, o Ministro do Exército, por ordem natural das coisas e pelas articulações de muitos dos que lhes eram próximos, se torna o alvo do Governo no processo sucessório. Acontece que, na cúpula militar e na Presidência, estavam as responsabilidades por decisões que haviam atingido renomados chefes militares, em função de acontecimentos da luta contra a subversão.

Além do que já ocorrera antes, é esse fato que acabará por vitimar, sucessivamente, vários generais que se contrapunham a decisão do Governo, na sua própria sucessão.

O Ministro do Exército tinha responsabilidade na exoneração do General Ednardo D’Ávila Melo no II Exército. Não há como refutá-la. O Chefe do Gabinete Militar – General Hugo Abreu – e outros chefes militares, na do Ministro do Exército – General Silvio Frota. Não há como negar. Generais, que eram tidos como certos no dispositivo de confronto com as decisões do Governo, acabam adotando posições diferentes, até por força da estrutura militar, da ordem jurídica e em nome das preocupações com o futuro do País. A estrutura do então SNI estava aliada ao Governo, pela própria escolha sucessória que iria se consolidar.

Muitos episódios envolveram estas escaramuças. As mais relevantes se situam no fato de que os auxiliares diretos criaram dezenas de acontecimentos que tinham como objetivo induzir o Presidente a acreditar que a demissão do seu Ministro era imperiosa e necessária à sucessão, subordinada ao projeto de abertura política. Na maioria deles, buscava-se caracterizar a candidatura daquela autoridade, às vezes através de fatos fabricados ou distorcidos, à revelia da Presidência e do controle sobre o processo da sucessão que agora envolvia os rumos da "distensão gradual e segura", o que já havia ocorrido com o Presidente Castello Branco e o seu sucessor, em outras circunstâncias e condições.

Do outro lado, assessores produziam fatos no sentido de que o Ministro do Exército não era demissível, induzindo a existência de um "dispositivo militar".

O Chefe da Casa Militar, inúmeras vezes, intercedeu, tentando desfazer as situações expostas no noticiário ou fora deles, em ambos os lados, algumas delas vazadas de dentro das salas do Governo e por meio das relações entre as áreas política e de mídia, de forma a evitar mais um rompimento. Aquela autoridade, assim, entendia que este confronto não servia nem mesmo ao projeto da "abertura" do Governo, nem às Forças Armadas e menos ainda ao País. O General Hugo Abreu, talvez porque comandara tropas de pára-quedistas em Xambioá, contra aquela segunda tentativa de insurgência rural, tinha uma percepção mais sensível dos problemas de ambos os lados. Tentou fazer com que o Ministro se declarasse não candidato e desfazer as "intrigas" palacianas que o colocavam contra o Presidente.

O Ministro do Exército, General Frota, alegava que não teria sentido declarar-se não candidato, quando jamais se apresentara como candidato e muito menos pensava em sê-lo. Era fiel ao governo que integrava. Assim se manifestava. Mas, não há como negar, havia movimentações contrárias ao Governo. Muitos militares que depois aderiram incondicionalmente ao novo Governo sabem disso e do que eu estou falando. Alguns chegaram aos altos postos. Os fatos superam as palavras e nem sempre são exatamente o que elas expressam.

Na verdade, a confrontação existente envolvia, quisesse ou não o Ministro, o seu cargo e a sua pessoa, dentro do triângulo de confrontação a que me referi, como foi o caso dos inquéritos, no Pará, sobre a luta armada em Xambioá, na qual Presidente e Ministro tinham posições divergentes. Nos epílogos, o fato é que, em mais uma dessas escaramuças, os assessores do Presidente o convencem (ou ele próprio se convence), com base em uma reportagem maliciosa da revista Veja (o último fato sobre o assunto na mídia), de que o Ministro tinha suporte para a sua candidatura e não só tinha, como "desfilava" com "ares de candidato", num evento – um programa de TV sobre o Exército nas fronteiras brasileiras – patrocinado pela Caixa Econômica Federal, de iniciativa do então Deputado Amaral Neto. Decide-se, no âmbito do Governo, exonerar o Ministro do Exército.

Na manhã do dia anterior, um assessor, ligado à Casa Civil e do Gabinete Pessoal da Presidência, espera o Presidente e, na porta do elevador privativo, exibe-lhe a revista. O fato induz e precipita os acontecimentos.

Para isso, o 12 de outubro de 1977, um feriado prolongado, era a ocasião oportuna, não só porque a cúpula militar estaria fora de Brasília, como por facilitar o controle das repercussões e das notícias nas redações dos jornais. Foi um dia de muitas tensões.

O Ministro vai ao Palácio do Planalto diante da convocação presidencial, pensando em que teria uma nova divergência com o Presidente, agora sobre um relatório de informações do III Exército sobre a subversão, com citação de nomes ligados ao Governo e à área política, o qual provocara mal-estar no Governo. Pensava o Ministro na defesa de seu comandante subordinado, sediado no Rio Grande do Sul. Estava demitido, ainda que nos limites protocolares de pedido do cargo, típico do regime presidencialista, ao que o Ministro devolve a responsabilidade da sua demissão ao Presidente, negando-se a pedi-la.

Estava substituído, não mais ou menos, pelo então Comandante do III Exército que já se encontrava no Rio de Janeiro, aguardando para assumir o cargo.

Pela primeira vez, um Ministro do Exército fora demitido na história da República, fora de um quadro de revolução recém-irrompida. Isto definiu o processo sucessório e selou os contornos da "abertura".

O Ministro recusou-se a tomar qualquer medida contra a decisão presidencial. A carta em resposta à demissão, cuidadosamente, foi divulgada pela própria Presidência para toda mídia. Ela justificava o ato perante o público e garantia amplo apoio da área política ao ato presidencial, pelo próprio conteúdo daquele documento. A área militar era isolada, pelo menos no Exército. Disso, a figura do Ministro se caracteriza como um opositor da redemocratização. A bem da verdade, nunca foi contra!

Este documento reproduz o triângulo de confrontação plenamente. É prova dele. Pertence a história, inclusive a esta história oral.

O governo fora persistente em seu projeto e nos personagens escolhidos para ele e o Ministro a seu quadro ético. Mas, o fato é que as Instituições Militares foram irreversivelmente atingidas por isso. Os homens de farda ou não podem ter-se beneficiado de uma "vitória" de um dos lados, mas o País, seguramente não. Menos ainda a Instituição Militar. O preço futuro disso tudo seria desastroso, como mostrariam os dias do porvir.

Este fato é o resultado direto do triângulo de confrontação e do braço de força entre o governo, políticos e setores revolucionários. Muitos fatos instigaram a isso e, evidentemente, as providências do governo para controlar as reações haviam sido tomadas. Não só quanto a segurança pessoal do Chefe do Governo, como outras que envolviam repercussões no meio militar, já conturbado pelos fatos. O chefe do Exército demitido recolhe-se ao ostracismo no bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro. Se havia algum dispositivo militar, ele silenciou.

A autofagia fazia mais uma vítima. A próxima seria o General Chefe da Casa Militar, quando se postou contra a candidatura do General João Baptista de Figueiredo, em razão dos mecanismos e caminhos que a induziram e consolidaram.

Este seria o último Presidente do regime de 1964. Mas, mesmo para ele, a sua candidatura se revelará amarga, no exercício do governo, como veremos. Nisto tudo, como em outros tantos fatos que sucederam em todos os escalões, está latente e exposto o eterno dilema dos soldados. Muitos deles comprometidos com um ou outro lado, não tiveram muito escrúpulo de omitir suas ações e encontrar razões e caminhos para mudar de lado. Outros tantos, coerentes com suas posições, fizeram o que lhes cabia fazer, no escalão hierárquico e na estrutura militar emergida desses acontecimentos. Tudo isso jogaria o Governo numa crescente impopularidade e no encolhimento do apoio político. O fim do ciclo revolucionário de 1964 estava decretado.

Os Generais do Alto-Comando das Forças Armadas chamados à Brasília, foram convocados à presença do Presidente, mediante ação direta de emissários militares, à medida que chegavam à Capital. Visava-se evidentemente manter a obediência e o enquadramento do setor militar ao Governo e a seu projeto. Só um deles – o General Ariel Pacca da Fonseca – foi ter antes com o ex-Ministro, por um enfoque ético que entendia não desrespeitava nem seu Ministro nem o Presidente, mas obedecia às suas convicções éticas e militares. Ele seria o próximo Chefe do Estado-Maior do Exército, a partir daquele episódio. Era um homem íntegro e um soldado exemplar, despido de ambições que, visando à preservação das Forças Armadas e ao bem do País, a outros valores se subordina, como todo cidadão probo.

Essa experiência foi decisiva para que eu pedisse para sair da Presidência da República, convicto de que a "abertura", necessária à normalidade da democracia, teria um preço alto a ser cobrado às Forças Armadas, por todos esses fatos. Queria retornar ao Exército, de onde não devia ter saído.

Pouco depois, alegando que o Presidente Ernesto Geisel se furtara de compromissos assumidos com ele sobre a sucessão, ao precipitar o anúncio do seu sucessor, no final do ano de 1977, o Chefe da Casa Militar, enunciando uma série de razões de ordem pessoal, pede demissão, pois havia perdido a confiança no Presidente e não mais poderia exercer o cargo. Sentia-se enganado pela longa convivência com o Presidente, em quem tinha total confiança e da qual decorriam aqueles compromissos. Demitido, é substituído pelo General Moraes Rego, homem da estrita confiança do Presidente, um militar de méritos indiscutíveis. Sob a Chefia deste último oficial-general, retornei ao Exército, recusando o convite para ser o assistente de meu chefe que havia sido promovido a General-de-Brigada, com todos os méritos. Nossos caminhos não eram os mesmos. Este seria, em pouco tempo, outra vítima da autofagia. Falcões e pombos continuavam sendo o que sempre foram. Era de se esperar.

As minhas discordâncias com tudo aquilo, já não permitiam que eu ficasse num barco cujo rumo não mais atendia à minha consciência. Expliquei isso a ele. Este testemunho, no que se relaciona com o processo revolucionário, exige que se exponha as minhas razões. Apesar de ser pára-quedista e ter um profundo reconhecimento pelo comando que o General Hugo Abreu havia feito naquela tropa, diga-se de passagem, quando eu lá não estava mais, nunca estive próximo dele e de seu estafe – do inglês staff (estado-maior) – pessoal, apesar de serem todos meus companheiros de Brigada Aeroterrestre, enquanto estive em serviço no Planalto.

Por outro lado, não tinha proximidade com o futuro Presidente e muito menos restrições de nenhuma natureza àquele oficial-general, com vários e longos anos de experiência em serviço, neste alto escalão. Uma única vez havia falado com ele.

Naqueles episódios todos, fui um observador solitário. Não fazia parte de nenhum "esquema" e de nenhum lado. Desse episódio, recrudesceu em mim, em toda sua amplitude e profundidade, o dilema do soldado. Retornei ao Exército após ter preparado a passagem das funções e atender às necessidades dos projetos de comunicação já programados. Eles foram executados integralmente nos seis meses seguintes. A minha tarefa tinha sido cumprida e muito bem.

Apesar de reconhecer que a "abertura" era necessária e oportuna ao Brasil e que talvez já fosse tardia, nunca consegui compreender os métodos desse jogo. Nunca consegui entender direito e menos ainda assimilar os interesses do poder e seus personagens.

Havia neles sempre uma superposição confusa entre os interesses de grupos e os reais interesses das instituições nacionais. Os argumentos, de parte a parte, os confundiam.

Só tinha sentimento e certeza das conseqüências. Nisso não errei. Não por ser um equilibrista dos "muros" convenientes em que muitos se colocam. A minha vida militar é um protótipo do antimuro. Mas, por achar que o futuro não nos reservaria bons tempos, exatamente devido àqueles fatos e métodos.

Todos eles e todas as conseqüências incontornáveis acabaram repercutindo pesadamente no governo do sucessor escolhido para levar em frente o processo de "abertura" e encerrar o período revolucionário de 1964.

O Presidente João Figueiredo recebeu o ônus de um regime balizado por dois limites. Dar seguimento a "abertura" e a anistia geral e irrestrita e lidar com uma incisiva inversão dos rumos do País na área econômica. O seu governo lidou, durante todo o seu período, alongado para seis anos, em nome da distensão gradual e segura, com séria crise econômica, gestada por fatores internos, mas seguramente ligada a fatores externos.

Já não existiam os apoios externos ao regime, mas existiam às oposições e o capitalismo internacional alterava a rota e o perfil de seus fluxos financeiros e de seus interesses. Internamente, as urnas da "abertura" demonstravam a perda de apoio da população, basicamente devido aos problemas econômicos. Os anseios por democracia plena eram um longínquo pano de fundo, bem articulado pela oposição política ao regime, colimando a eleição direta para a Presidência e confundindo-a com o próprio regime democrático, como uma exigência inamovível do regime presidencialista. A maior democracia do mundo não tem eleição direta para a Presidência. Mas...

Enquanto isso, à revelia de tudo isso, em 1989, já estava consolidado no Consenso de Washington o que o mundo queria do Brasil e já vinha aplicando, desde o início da década, em todos os continentes. Retardou aqui pela existência da "ditadura militar".

Só faltavam novos personagens, só comprometidos com um nacionalismo fraudado em nome da ideologia da "esquerda" e nem tanto com o Brasil, capazes de aplicar aqui as mudanças necessárias. Daí, a perda de apoio externo, nas relações internacionais. Nada de potência ao sul do Equador. O nacionalismo de fachada dos antigos integrantes da esquerda desapareceria nas delícias do poder...

O último Presidente do ciclo de 1964 lidou, também, com a deserção contínua de apoios políticos, a começar pela de um dos arquitetos, senão o maior deles, dos caminhos que o levaram ao cargo – seu Chefe da Casa Civil – que permaneceu no cargo, desde o governo anterior. Esta permanência foi uma decepção para parte do setor militar que apoiara o Presidente, onde aquele Ministro, de origem militar, era visto de forma negativa e ao qual se atribuíam muitas dissensões no meio militar.

Lidou ainda com um crescimento contínuo da oposição política nos processos eleitorais que, coerentes com a "abertura", foram modificados nos estados e municípios, retendo o sistema indireto, somente para a Presidência.

Nesta esfera, então, viu a deserção articulada e profusa dos "homens de ouro" e de outros "metais" menos nobres que abandonavam o "maior partido do Ocidente", no dizer de um desses áulicos que por ai ainda estão, já articulados em outra linguagem política. Essa deserção viu o candidato do Presidente à sua sucessão, derrotado dentro do próprio partido de apoio a seu governo.

O partido da situação preferiu desertar do Governo do Presidente Figueiredo, durante seu mandato, quando nada mais poderia esperar dele. Ao final, já em bloco neste ato, os seus congressistas uniram-se à oposição e elegeram o candidato da oposição, concluindo uma tentativa que antes haviam recusado, como veremos à frente. O fim do período da Revolução de 31 de Março estava também selado. O seu fim já havia sido decretado alguns anos antes.

À Revolução de 1964, só restava apoio no meio militar. O partido de apoio desapareceu e, com ele, os parlamentares da situação, não por imposição da nova Constituição que seria convocada, mas porque a situação não passava de um leque de interesses de toda ordem, absolutamente igual ao da oposição, com o sinal trocado.

Esse último Governo promoveu a anistia ampla, geral e irrestrita aos brasileiros, ainda que tenha tido que enfrentar episódios graves na verdadeira confusão em que se transformara o mundo político e no confronto com setores da extrema esquerda, em luta permanente com o Governo. Deserção, confrontos e crise econômica. Foi este o amargo campo em que esse último governo teve que caminhar. Até com setores militares, como uma cobrança pelo passado recente que a sua candidatura exigira do meio militar.

O pior rescaldo que sobrou nas salas de seu governo, após encerrado, é que ele acabou vendo o objetivo maior da anistia desvirtuado. A "revanche dos vencidos", no jogo do poder, retirando-lhe o mérito da sua ação em prol da redemocratização, para decorá-la como galardão de um esforço da "luta pela democracia", para a qual a oposição, surgida no meio político, atribui a si e a seus próceres. A esse papel e a esse mérito aderiram os políticos da situação. Todos lutaram, de alguma forma, contra a "ditadura militar", no momento oportuno.

As suas convicções democráticas e a sua contribuição ao retorno do regime constitucional pleno lhe foram sonegadas na "guerra das versões" e atribuídas a outros "heróis da democracia" que a haviam arrancado do regime de 1964 com o apoio do povo, para a restauração democrática.

Aí, está de novo presente o eterno dilema dos soldados...

Deste último período, caminhamos para os dias de hoje. É preciso que se afirme que nada o que se diz, hoje, sobre os anos sucessivos, após o dito "regime militar" encontra respaldo, com exceções óbvias e evidentes, na verdade dos fatos. Na área econômica, por exemplo, o brutal endividamento do País, não decorreu daquela época. Ele foi um efeito de políticas governamentais posteriores e ocorreu na verdade, multiplicado por dez vezes, na última década do século XX, mais de dez anos após o encerramento do último período revolucionário de 1964. A relação dívida – PIB em moeda forte era de 1 para 10, no governo que iniciou a "abertura". Hoje, é de quase 1 para 1, sendo que este endividamento agravou-se durante os últimos dez anos e, hoje, compromete mais de 90% da renda nacional, se considerada em termos brutos.

Da mesma forma, o sistema tributário e as restrições impostas pelos tais "superávits primários" imobilizou o crescimento econômico, atingindo em cheio o sistema energético, ambos imprescindíveis ao País e um dependendo do outro.

A desnacionalização do País, em particular na sua infra-estrutura econômica, outro exemplo, é responsabilidade exclusiva da esquerda que assumiu o Poder, seja ela com ares de social-democracia, maquiada com neoliberalismo, ou mais à esquerda, com os partidos que estão no governo, neste momento. Com aquela desnacionalização, desapareceram, em ralos obscuros, os milhares de dólares que as "privatizações" deveriam gerar para reduzir a dívida, enquanto ela se multiplicava por 10.

Ao feitio do que ocorreu com o último governo do período revolucionário o atual lidará com todos os "cadáveres" e "fantasmas" que seu principal partido ajudou a criar.

De algum modo, os militares serão ainda responsabilizados "na guerra das versões", pelo século afora, por tudo o que o País seguramente ainda terá que passar no futuro, em função da inépcia das elites nacionais, agravadas, a partir de 1990, com a esquerda no governo.

Assim, os graves problemas estruturais que o País enfrenta hoje, na área de energia, transporte, telecomunicações, recursos naturais, força de trabalho, sistema tributário, mercado, etc, são fruto de políticas que não só não decorreram das ações dos governos ditos "militares", como estão estritamente ligados a políticas levadas a efeito por governos que os sucederam e delas decorrem. Elas atenderam muito mais aos interesses externos do que aos reais objetivos nacionais.

Desta experiência, estou convencido, mais do que nunca – os militares são "os réus da história", história essa que não lhes faz justiça. Como disse antes, as linhas da história nem sempre são as que o Brasil precisaria, mas ensinará aos homens, dia mais dia menos, o que poderiam aprender sem tantos sacrifícios e sem tanto ônus para o povo brasileiro.

 

Qual a sua avaliação a respeito da "abertura", desde o Governo Geisel?

Vários fatos indicavam a exaustão do regime, principalmente no processo e forma de escolha do Chefe do Governo, como vimos. Portanto, em face das ocorrências no meio militar e da derrota imposta à luta armada, a "abertura" ocorreria de uma forma ou outra. Até porque as Forças Armadas brasileiras são ricas em convicções democráticas e com elas visceralmente comprometidas. Para negar isso, é preciso subverter e reescrever a história do Brasil! Sob o ponto de vista da transição, o Presidente Geisel é o responsável por ela, como o é por todo ônus que recai sobre as Forças Armadas. Foram as escolhas e decisões de seu governo que nos levaram aonde estamos hoje. Ao longo do tempo isto ficará à mostra e comprovado. Não haverá como se eximir disso.

O que resta saber é se haveria outra trilha a seguir, em função do próprio caminho que aquele governo abriu, caminhando no processo revolucionário. A análise das múltiplas variáveis deste processo, ainda que tratada em síntese anteriormente, ultrapassa o escopo deste testemunho, salvo melhor juízo.

Entretanto, cabe um relato sobre a candidatura de oposição, surgida após a indicação do General Figueiredo. Como ela surgiu, pelo menos sob a ótica de setores militares que a apoiaram, era uma tentativa de se evitar os efeitos futuros sobre o meio militar que acabaram ocorrendo, dando à abertura outros contornos. Convenceu-se a oposição política, através de pessoas como o futuro presidente eleito – Tancredo Neves – de que um novo período curto de três anos, voltado para esforços definidos e prioritários, poderia prover mais eficientemente o processo da "abertura".

Um oficial-general com notória competência administrativa chefiaria um governo de conciliação, com a adesão de setores políticos da situação. Caberia a esse governo convocar uma Assembléia Nacional Constituinte Exclusiva, que teria sido capaz de dar ao País um arcabouço jurídico adequado e sem as distorções que uma não exclusiva, convocada muito depois, acabou gerando. Os constituintes eleitos não possuiriam mandatos parlamentares. Isto escoimava a nova carta magna de interesses políticos. Tratava-se, portanto, de uma reforma política que até hoje é necessária ao País e que deixou de ser realizada, porque a Constituinte se impregnou de interesses meramente políticos, exatamente porque não foi exclusiva.

Naquele modelo de Constituinte, os interesses políticos, que acabaram comprometendo a estruturação e o tempo de vida da Constituição de 1988, teriam sido limitados. Ela já foi tão retaliada que o melhor seria substituí-la e é o que vai acabar acontecendo. Pior, retaliada ao sabor de interesses de governo e por quem, a menos de cinco anos a havia construído. Agora, não é mais o Governo que se subordina aos dispositivos constitucionais, mas a Constituição que muda ao sabor das políticas de governos.

Isto teria se excluído pela representação seletiva de nomes notáveis, à altura da missão constituinte e que não seriam elegíveis para os mandatos parlamentares imediatos, após a sua promulgação. A representação política eleita sob esta carta-magna, por sua vez, não teria poder constituinte, pelo menos por um período. E se viessem a exercê-lo não o teriam com os mesmos dispositivos que existem, nem com as mesmas facilidades regimentais.

Haveria, portanto, um compromisso exclusivo com o arcabouço jurídico que melhor atendesse às necessidades do País, naquele momento e no futuro. Este projeto constitucional teria ainda o poder de dar ao País, meios de defesa do interesse nacional, principalmente na ordem econômica que nela se contivesse. Isto representaria não só uma defesa para o País, diante da mudança de rumos das pressões externas, como um mecanismo hábil para a união nacional que contivesse os bolsões de radicalismo.

Além disso, seria uma alavanca para o desenvolvimento. Nessa alternativa, ainda, se esperava que a anistia, que seria embutida dentro do processo constituinte, pudesse conter nos limites democráticos, pelo concurso da oposição e da situação, aquilo que se consolidou como "a revanche dos vencidos", confinando os radicais de ambos os lados, em particular reduzindo a "extrema esquerda" à sua real dimensão.

Quanto aos apetites políticos, excluídos em uma Constituinte Exclusiva, os subordinaria ao interesse público, não só pela sua reforma eleitoral, mas pela garantia de uma representação política futura que não tivesse poder constituinte tão elástico. Por si só, isto contribuiria para a melhoria do nível dos representantes do povo.

Ainda outra tarefa se atribuía a este governo alternativo. A de, por meio de um ministério de altíssimo nível e competência, representando uma união nacional autêntica, agregar meios de controlar os problemas que já assumiam proporções indesejáveis, através de uma política econômica que representasse uma nova via e um novo horizonte para o País. Como se vê, uma promessa até hoje não cumprida por nenhum governo. Assim, poderiam ser retomados os rumos do desenvolvimento que o processo revolucionário, indiscutivelmente, impusera ao País e que se via sob freios.

Este projeto recai sobre a figura do General Euler Bentes Monteiro – um militar com renome na área administrativa e com um compromisso nacionalista autêntico. Além de ser um homem com trânsito na área política, pelo que já havia feito na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).

Portanto, resguardando o processo revolucionário e o controle político necessário à distensão, assim como dando amplo espaço às figuras da oposição que pudessem construir e consolidar aquela opção para a transição política.

Acontece que o espaço para ela só existia na oposição, pois o da situação já estava definido pelo Presidente Geisel. Julgava-se que, em face das grandes fissuras, tanto na área política como na militar, que esse projeto tivesse força intrínseca para decolar.

Mas, a verdade é que a oposição política a entendeu como mais um instrumento de desagregação das forças do Movimento de 1964. Além disso, era uma ruptura incisiva com os costumes políticos. Não serviria aos políticos, senão nos limites de seus próprios interesses, ressalvadas valiosas e honestas exceções. Por isso mesmo, a situação política legal viu o que lhe era mais conveniente e seguro – o controle do governo por mais seis anos e não a respaldou, setorialmente, exceto com honrosas e valiosas exceções, também.

Por fim, a área militar, onde era mais difícil o entendimento desse projeto alternativo, manteve-se na mesma situação, com os mesmos dilemas e contradições que acompanhariam o último período da Revolução de 1964. Além disso, pesava o fato que era uma candidatura de oposição, em sua face política.

Esta área militar, também, não aderiu ao projeto daquela candidatura, já sob o impulso de se distanciar do processo político. Nisso, foram decisivas as posturas da Marinha e da Aeronáutica, nesta altura mais distantes e com alguns setores já em posição crítica silenciosa ainda, mas consistente.

Eu, que havia sido transferido para Campo Grande-MS, sob sérias restrições pessoais, algumas até de natureza ilegal, optei por apoiar essa iniciativa, sem muita expectativa de sucesso, primeiro porque sabia o que esperar da área política, por tudo o que já narrei.

E... porque conhecia a fundo o que ocorria na área militar. Ali era muito mais difícil, diante das feridas abertas, se entender a magnitude de uma iniciativa com aquele perfil.

Por várias vezes, argumentei com o próprio General Euler Bentes e com os seus assessores diretos, sobre esses fatos e meandros tortuosos. Com o General Hugo Abreu, também. Ele que foi um dos articuladores dessa candidatura e de quem me havia aproximado depois que ele fora preterido pelo Presidente da República, na promoção ao último posto da carreira, também em outro episódio doloroso que lhe antagonizou com muitos militares e onde muitas "traições", tão comuns na natureza humana, foram vistas por mim. Elas nada acrescentam de útil a uma história oral do Exército. Deixemo-las nos limites da natureza humana e suas fraquezas.

Tudo o que se situava mais à esquerda, então, a recusou integralmente. Assim se fez o caminho das coisas. Essa candidatura acabou sendo derrotada, por esses motivos e por muitas defecções. Eu a apoiei, acima de tudo, pelo que repudiava como conseqüências que considerava inevitáveis em função do que vira, enquanto estive na Presidência da República e porque avaliei que os seus três fundamentos eram capazes não só de evitar o que ocorreu depois, principalmente com o Exército, já que a Marinha e a Aeronáutica, permaneciam mais abrigadas dos efeitos futuros, até porque nunca um Almirante ou Brigadeiro fora alçado à condição de chefia suprema do processo revolucionário.

Mas, também, porque talvez teria produzido um caminho melhor para a transição, no interesse do Brasil e de seu povo. Uma coisa era a razão e a genética dessa candidatura; outra, muito diferente, foi sua construção e seu caminho.

Restava, portanto, a qualquer um que tivesse em vista o Brasil acima de tudo, desejar ao Presidente João Baptista de Figueiredo e a seu governo, o sucesso que o País precisava.

Não se pode negar que, sejam quais tenham sido os erros de seu governo, ele foi fiel ao projeto de abertura política. É a ele que se deve a redemocratização plena e não aos falsos "heróis da democracia" que agora querem um monumento a seus mortos no Araguaia, petrificando na memória do povo, o que na verdade foi um serviço exclusivo à causa do comunismo internacional.

 

Houve, a partir de 1985, e existe, hoje, o chamado revanchismo, por parte de políticos e autoridades em geral, bem como da mídia, em relação aos militares? O que o senhor tem a dizer da Lei de Anistia?

Os objetivos da Lei da Anistia obedecem rigorosamente a natureza cultural e a história brasileiras. Se pudéssemos apontar uma figura histórica que a inspirou, seguramente e sem muitas dúvidas e esforços, ela recairia no Duque de Caxias – um militar expoente do Império Brasileiro a quem o Brasil deve, entre outros, a sua integridade territorial! Uma coincidência – ele e a história das revoluções no Brasil são a fonte inspiradora do processo de anistia e de agregação dos brasileiros sob um destino comum e em uma base territorial una, extensa e indivisível... por enquanto. Portanto, a anistia é uma conseqüência natural da história brasileira.

Entretanto, sobrepondo-se a esses milagres da nossa cultura, a ideologia se impôs aos objetivos da Anistia pós-1964. Isto deformou-a e a tornou facciosa em sua execução, bem como a transformou em instrumento dessa mesma ideologia. A conseqüência mais funesta disto é que manteve e manterá a cizânia entre os brasileiros. Esta divisão imposta por credos ideológicos fratura o país e ajuda a enfraquecer as componentes do poder nacional, em suas expressões políticas, econômicas, psicossociais e militares. Ela fragilizou a vontade nacional em face de desafios e das crises que o País teve e terá, cada vez mais, que enfrentar, exatamente quando mais precisávamos de mecanismos de defesa e de união nacional, em face dos assédios da nova ordem mundial.

Em suma, a Lei de Anistia, sob esse cenário, não passou de um engodo que engana, principalmente, os próprios brasileiros e distorce os interesses nacionais. Ela foi transformada em um fantoche da ideologia. As feridas abertas por quem a conduziu, ao invés de fechar as antigas, já custou e ainda custará caro ao povo brasileiro. Tanto mais quanto mais mergulharmos na soberania relativa, nos meandros ideológicos e em projetos de poder que visam, em última instância, a transformação do regime político, para exotismos fora de moda.

 

Como o senhor analisa, hoje, após a queda do "Muro de Berlim", o Movimento Comunista Internacional? Desapareceu o Comunismo? Qual a situação do Brasil, nesse contexto?

Não desapareceu. A dogmática marxista, em face das mudanças, até surpreendentes e aceleradas no bloco soviético, perdeu, pelo menos em parte substancial, instrumentos dialéticos com que exportava a "revolução comunista". Mas, outras metodologias ocuparam o espaço, em decorrência do fim da guerra-fria. A hegemonia que surgiu depois daquelas mudanças trouxe à cena agressivas investidas do capitalismo.

Isto determinou um mundo onde o mercado é o juiz supremo e único das economias, as fronteiras de um Estado soberano se tornaram apenas acidentes históricos e a invasão econômica e a liberdade dos fluxos de capitais se impuseram como uma regra axiomática. É isto que define a soberania relativa, na verdade! Neste labirinto estratégico de projeção de poder, os comunistas descobriram nas teorias do revolucionário italiano uma nova dialética – usar as instituições democráticas do estado nacional (governos, ensino, mídia, órgãos governamentais e não governamentais, etc.) como aliadas dos movimentos de natureza revolucionária e com eles coexistirem abertamente. Eles fornecem energia entre si, visando à conquista e à transformação do regime político. Nesta sinergia, buscam manter inertes, sob pressão permanente e através de modificações estruturais, realizadas por meio de mecanismos da própria democracia e de "pressões" sociais, os segmentos que podem reagir a essa nova metodologia. Coexistem, em nome dos próprios princípios democráticos! Assim o comunismo constrói sua trajetória atual.

Resta saber como o mundo hegemônico fixará limites a essa nova expansão, uma vez que há uma incompatibilidade entre os interesses do mundo central e os processos internos dentro das soberanias relativas que foram impostas aos países emergentes e às periferias econômicas no mundo. Exatamente onde os "gramscismos" mais se tornaram titulares do poder político! Além disso, estamos diante de uma nova ordem mundial onde a projeção de poder está sujeita não mais à simples oposição de óbices e antagonismos, quer por mecanismos econômicos, quer por ação de política externa e diplomacia, mas por ações militares unilaterais e à revelia da ONU.

Pelo menos quatro das motivações genéricas de intervenção militar presentes nessa nova ordem, envolvem as questões ideológicas e da globalização (governos antagônicos, terrorismo, controle de armas de destruição em massa e controle de fontes de energia e de água).

 

A imagem das Forças Armadas vem apresentando elevados índices de aceitação junto à sociedade, como atestam várias pesquisas de opinião. O que o senhor acha disso?

Tenho dúvidas sobre essas questões de imagem e das pesquisas que as produzem, no caso de Instituições Nacionais permanentes. Apesar de ter exercido funções relevantes nesta área, não pretendo referendar os argumentos com base nesta experiência, mas em fundamentos lógicos.

As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e basicamente sua vida orgânica se baseia em necessidades de segurança do povo e na defesa da herança histórica (território, povo e recursos).

Essas necessidades de segurança ocupam a base da pirâmide das necessidades humanas. Portanto, esse fenômeno social coloca a instituição militar em consonância com o povo. Sua vida vegetativa e o processo brasileiro de incorporação universal do serviço militar exportam para a sociedade valores intrínsecos de sua organização e da sua vida. Esses valores são os que menos se vê em outras instituições nacionais importantes, de natureza não permanente, como é o caso das organizações políticas, por exemplo.

Entretanto, são valores caros ao homem comum e integram o caráter nacional. Fato similar acontece com a Igreja que intermedia as relações religiosas do povo com a crença no Ser Supremo Universal que está na base majoritária da nossa população. Ela tem uma consonância com a cultura e a vontade popular.

Essa imagem positiva não decorre, portanto, do que sobre elas é dito, ainda que massivamente. Nem do que a elas seja atribuído como agressões a outros valores que também são caros ao povo e fazem parte de seu caráter, no nível civilizatório em que esteja...

Ainda que uma propaganda intensa possa fraudar a imagem de uma Instituição, não consegue se sobrepor, no tempo, à sua realidade permanente que fluiu para o restante da sociedade. Por exemplo: Um governo pode intensificar ao máximo a publicidade sobre seus esforços na área da saúde. A realidade dessa área é que vai prevalecer.

Imagem institucional não é um produto de mercado! É bem verdade que parte desse povo faz comparações entre o que era o País no período da tal "ditadura militar" e o que é hoje. Isto, também, neutraliza a deformação de sua imagem, por mais que haja esforço ideológico em sentido contrário. Não há como o adjetivo substituir o substantivo. É preciso atentar e admitir, de outro lado, que a "guerra das versões" pode reescrever a história, se nada ocorrer como reação. De um modo geral, é a versão que escreve a história.

Contudo, a razão fundamental para formação dessa imagem está na sociologia da Instituição Militar e não nas versões dos acontecimentos que não sofreram ainda o filtro da história. Não há, pois, e este é o alerta, razão para que as Forças Armadas sintam-se imunes ou preservadas em sua missão nem que descuidem dela. Menos ainda para que desconheçam a engenharia de poder (interna e externa) que sobre elas se projeta, comprometendo seus valores e sua destinação.

 

Por final, o senhor gostaria de aduzir algo mais acerca da Revolução de 31 de Março de 1964, que devesse ficar registrado para a história, por meio deste Projeto Oral do Exército Brasileiro?

A Contra-Revolução de 31 de Março é um episódio histórico com protagonistas e vertentes confrontantes, muito definidas no seu início e nem tanto no seu curso. Se por um lado ela foi capaz de mudar a face econômica do País, em um monumental e meritório esforço de desenvolvimento, ela não foi capaz de superar, por defeitos de nosso próprio caráter nacional (em gravidade maior nas elites), a dívida social do Estado Brasileiro com a Nação que o organiza.

Muitas variáveis concorrem para esse resultado. A complexidade e a multiplicidade da natureza dessas variáveis – suas causas e efeitos – tornam impossível uma análise, neste testemunho. Mas, é importante deixar gravado que, enquanto vivermos a divisão ideológica interna, nos moldes e profundidade que permanecem em nosso meio, jamais o Brasil poderá resolver a equação que traduz o fim da própria natureza do Estado – prover os meios para uma vida digna para a nação que o organiza!

Enquanto não entendermos que teremos que construir, com nosso trabalho, os fundamentos de um projeto nacional e enquanto nossas mazelas políticas não forem alijadas dos poderes formais que estruturam o Estado, não teremos solução. É de uma formidável e imensa reforma política e de costumes que precisamos, mais do que tudo.

Ciclicamente, seremos recolonizados por modelos externos e nisto perdemos o controle sobre nossa herança histórica, nela especialmente sobre nossos recursos, e sobre o nosso próprio destino. Por outro lado, enquanto não entendermos o mundo como ele é e criarmos mecanismos eficientes de defesa de nossos interesses, qualquer que seja o regime político, estaremos sempre na "área cinzenta" do mundo.

O primeiro passo, para tanto, é nos livramos de todos os herdeiros dos "entreguistas" que a elite nacional, ao longo do Império e da República, fartamente produziu entre nós. Eles existem à esquerda e à direita e para onde quer que se volte a busca.

O segundo é abandonarmos as "utopias" de internacionalismos de qualquer espécie.

Só a produção de autos e as provas da história, neles diligenciadas nos vários campos, poderiam tornar mais clara a história oral que queremos transmitir, comprometida com a verdade histórica, às gerações futuras. Neste esforço, incluo o meu testemunho, certo de que ele não me pertence, mas ao futuro dos meus concidadãos.

Para isso, relembro Rui Barbosa em duas de suas manifestações, valiosas e oportunas:

"(....) o que a política e a honra nos indicam é outra coisa. Não busquemos o caminho de volta à situação colonial. Guardemo-nos das proteções internacionais. Acautelemo-nos das invasões econômicas. Vigiemo-nos das potências absorventes. (....) Tenhamos sentido nos ventos que nos sopram de certos quadrantes do céu. 0 Brasil é a mais cobiçável das presas; e, oferecida, incauta, ingênua, inerme, a todas as ambições, tem, de sobejo, com que fartar duas ou três das mais formidáveis. (....) Mas, o que lhe importa é que dê começo a se governar a si mesmo, porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida e amenizada na tutela perpétua de governos que não escolhe. Um povo, dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio dos senhores, não pode aspirar seriamente, nem seriamente manter a sua independência do estrangeiro." (Março de 1921 - Discurso aos Moços, aos Bacharelandos de São Paulo)

"O povo brasileiro sabe, enfim, que as Forças Armadas não personificam senão as grandes tradições da Pátria, na paz e na guerra, e os que não confiam nelas é porque têm razões para desconfiar da Nação.... Aqui está porque as prevenções palacianas se voltam hoje contra as Forças Armadas, ao mesmo tempo que nelas se concentram as esperanças liberais ... Com o instinto dessa missão nacional, com a consciência desse papel patriótico, as Forças Armadas não podem, e certamente, não hão de subscrever a sua própria extinção, e, muito menos, o aniquilamento pela desonra, pela calúnia, pela ilegalidade, pela proscrição, essa morte oral a que parece quererem condená-las antes de dissolvê-las." (Diário de Notícias, de 09 Nov 1889).