Campanha de Serra está nas mãos de comunistas

Sáb, 27 de Agosto de 2011
Seção:
Categoria: 1964

24/03/2002 - 07h16

MÁRIO MAGALHÃES

Folha OnLine - sucursal do Rio


O camarada Alberto foi preso na virada da década de 1950 para a de 1960, quando era estudante e ajudou a parar o trânsito de São Paulo numa manifestação.

Mal o camarada Alberto deixou a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, o camarada Arnaldo, acadêmico de ciências sociais, ascendeu no movimento estudantil: foi um dos articuladores da eleição do aluno de engenharia José Serra para as presidências da União Estadual dos Estudantes de São Paulo e da União Nacional dos Estudantes.

Após a deposição do governo constitucional de João Goulart em 1964, quando o camarada Arnaldo já concluíra o curso, o camarada Mateus presidiu o Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. Em 1968, Mateus assaltou o trem pagador Santos-Jundiaí, amealhando fundos para a luta armada contra o regime militar (1964-1985).

Nove anos depois, muitas vezes equilibrado sobre um ônibus, o camarada Fritz, presidente do centro acadêmico de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, discursou em comícios de oposição aos generais.

Alberto, Arnaldo, Mateus e Fritz, todos ex-militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro), estão unidos hoje na talvez maior empreitada política que já viveram: fazer do senador José Serra (PSDB-SP), 60, o novo presidente.

Codinomes

Mateus era o codinome do atual ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, 56. Fritz, na clandestinidade, era o atual prefeito de Vitória, Luiz Paulo Vellozo Lucas, 45. Sem nomes de guerra, Alberto era o deputado federal Alberto Goldman, 64, e Arnaldo, o líder do governo na Câmara, Arnaldo Madeira, 62.

Os quatro integram a Executiva Nacional do PSDB, que conta ainda com outro ex-camarada do Partidão, como o PCB era conhecido: o secretário-geral da Presidência, Arthur Virgílio Neto, 56.

Dos três nomes da coordenação de campanha de Serra já confirmados, dois são de egressos do PCB: os jornalistas Milton Coelho da Graça, 71, e Henrique Caban, 61 (o coordenador-geral é o ministro Pimenta da Veiga.)

No Movimento de 1964, Coelho da Graça foi preso pelos militares em Recife, apanhou a valer e ficou oito meses na cadeia. Voltaria a ser detido por motivos políticos em 1970 e 1975. É o assessor de comunicação de Serra.

Caban, como o colega, integrou o núcleo diretivo de diversas publicações jornalísticas, como "O Globo" e o "Jornal do Brasil". Foi contratado como administrador da campanha.

Coelho da Graça e Caban são amigos há quatro décadas do presidente do Instituto Nacional do Câncer, Jacob Kligerman, 61. Foi numa garçonnière (apartamento destinado a encontros amorosos secretos, na era pré-motel) do então estudante de medicina Jacob, também militante do PCB, que Serra escondeu-se em 64, antes de se asilar na Embaixada da Bolívia.

A presença exponencial de ex-comunistas ao redor de José Serra está longe de indicar um viés esquerdizante na candidatura. O próprio Serra nunca foi marxista. Foi um dos fundadores, em 1962 e 1963, da Ação Popular, organização de esquerda originária de grupos juvenis ligados à Igreja Católica. Tinha como companheiros Sérgio Motta (futuro ministro das Comunicações) e Herbert de Souza (o sociólogo Betinho), ambos já mortos.

A AP teve o apoio do PCB para fazer de Serra o presidente da UNE, à época uma sigla com ampla influência política. Hoje, aliados pontuais, como na eleição da entidade estudantil, formam no grupo mais próximo do pré-candidato peessedebista.

Sem acaso

"Tudo isso tem a ver com a nossa trajetória; nada é por acaso", diz o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP), vice-presidente nacional do partido. "Sou absolutamente coerente com o meu passado", afirma o prefeito Vellozo Lucas. "O PSDB é a esquerda possível no mundo. Não há nada viável à esquerda do Serra."

"O vírus social pega e fica", diagnostica o oncologista Jacob qualificação política na atividade médica: "Eu não sou de esquerda. Eu faço esquerda".

O próprio Serra recusa uma autodefinição: "Não gosto dessas definições porque elas não querem dizer nada. Mas provavelmente alguém me classificaria como centro-esquerda".

Não é novidade para ele a observação de que muitos quadros tucanos começaram a vida política no PCB. Brincando com o peso no PSDB de ex-militantes da AP, o governador de São Paulo Mário Covas, morto no ano passado, costumava dizer: "O governo Fernando Henrique é a AP". "É a AP, mas também é o Partidão", respondia Serra.

No ideário oficial do PCB, a economia se fundamentaria na propriedade estatal dos meios de produção e o instrumento de poder seria a ditadura do proletariado. "Isso tudo já foi", afirma Serra. "Mas a idéia da justiça social, da redução de desigualdades, ficou muito forte."

O apoio dos ex-comunistas a Serra não é formal, como o de Jereissati. Eles estão entre os principais articuladores políticos e formuladores do programa que ficará pronto em maio ou junho.

No último dia 12, quando foram divulgadas pesquisas de intenção de voto para a Presidência atestando o emagrecimento de Roseana Sarney (PFL), Serra telefonou para Vellozo Lucas.

É o prefeito de Vitória quem conta: o senador lhe perguntou como estava: "Eu disse que estava igual àquele cara da piada: engessado para não rir".

Explicou: um homem ia num carro com a mulher, podre de rica, e os pais dela, igualmente podres de ricos. Acidente. A mulher e os sogros morrem. O homem herda tudo. Depois da batida, é engessado do pescoço ao dedo mindinho do pé. Um amigo diz: "Você deve estar todo quebrado". O homem responde: ´Que nada. Não sofri um arranhão". E por que o gesso?

"Fiquei rico. Estou engessado para não rir´.

O prefeito deixou o PCB em 1985, após 11 anos. Diz que uma das principais lições da militância comunista foi "aprender a identificar o inimigo principal". ´Fazer não é coisa estranha."

"O Partidão foi minha escola de patriotismo, de ética, de solidariedade e militância", afirma. E constata, mais de uma década após a queda do Muro de Berlim: "Desenvolvimento é desenvolvimento capitalista, e não outro".

Fornecedor de quadros

Enquanto esteve no PCB, Vellozo Lucas topou com Goldman em encontros partidários. "Eu era moleque, ele era capa-preta do Comitê Central."

Goldman diz que "o PCB sempre foi fornecedor de quadros da política nacional. Muitas idéias da velha esquerda permeiam muitos de nós. Minha cabeça não mudou absolutamente nada em termos do que eu imagino ser uma sociedade melhor. Claro que a forma pela qual se atinge essa coisa mudou".

Assim como Goldman, o ministro Aloysio Nunes Ferreira só aderiu ao PSDB na era Fernando Henrique Cardoso presidente. Antes, ambos estiveram no PMDB, onde giravam em torno do ex-governador de São Paulo Orestes Quércia.

No movimento estudantil, Nunes Ferreira começou no PCB, passou para a dissidência guerrilheira de Carlos Mariguella, exiNum recente bate-boca com Tasso Jereissati, antes da definição partidária pró-Serra, o governador do Ceará o acusou de promover ações desleais a favor do então ministro da Saúde.

A história de Nunes Ferreira no movimento estudantil é posterior a 1964, bem como a de Arthur Virgílio, este no curso de direito da UFRJ. A do deputado Arnaldo Madeira (SP), anterior. Ficou no PCB de 1961 a 1965.

"Minha cabeça evoluiu", diz. O que ficou dos tempos de comunista foi "a preocupação básica com o social, com a redução da pobreza e das diferenças sociais. Tudo através da democracia".

Milton Coelho da Graça, chefe da assessoria de imprensa da campanha, não fala em "evolução", mas em "realismo": "O pessoal ex-Partidão tem compromisso com a realidade. Tenho admiração profunda pelo Deng Xiaoping [comunista chinês condutor de reformas capitalistas, morto em 1997] porque ele foi capaz de ver a realidade. Nós somos realistas, da mesma maneira que os católicos".

O jornalista foi congregado mariano. "Além de aprender as virtudes da autocrítica, aprendi também as da confissão."

Foi um amigo de Coelho da Graça e Henrique Caban, o médico Jacob Kligerman, quem emprestou a garçonnière para Serra se esconder em 1964. Na primeira noite do golpe, o então presidente da UNE fora levado por seu amigo Marcelo Cerqueira, também do PCB, para dormir na Baixada Fluminense, na casa de Tenório Cavalcanti, o legendário "homem da capa preta".

Trinta e quatro anos depois, o ministro da Saúde Serra convidou Kligerman, um conceituado especialista em cirurgia de cabeça e pescoço, para assumir o Inca.

Há dias, Serra ligou em busca de subsídios para responder a uma crítica do pré-candidato Ciro Gomes (PPS) à política anticâncer do governo. ""Foi uma agressão indevida. Serra estava chateadíssimo", diz Kligerman.

Ironicamente, o PPS de Ciro é a continuidade histórica do velho PCB, fundado em 1922 e, ao abandonar seus dogmas, rebatizado em 1992.

Milton Coelho da Graça, fundador da nova sigla, afastou-se aos poucos. Como técnico, dirigiu a comunicação de Cesar Maia (PFL) na Prefeitura do Rio.

Nos anos 60, Maia chegou a passar pelo PCB. Como o pré-candidato do PSB à Presidência, Anthony Garotinho, na década de 1970. "Houve uma diáspora que se espalhou por todos os partidos", diz Coelho da Graça.

Na campanha de Serra, ex-comunistas se reencontram. No passado, quase toda a esquerda qualificava pejorativamente o PCB como um partido "reformista", mais interessado em alianças com "setores progressistas da burguesia" do que com revolução. Pragmático, era a direita da esquerda.

Agora, como concorda o deputado Goldman, os velhos comunistas são uma espécie de esquerda do PSDB. Pregam uma nova reforma, desta vez desenvolvimentista. Talvez tenham encontrado o seu destino.


Comentário do Tolerância Zero

Não é só a campanha do Serra: é o Brasil !