A Época e o Dops
- Sáb, 27 de Agosto de 2011
- Seção:
- Categoria: 1964
*Sandro Guidalli
Embora os jornalistas obviamente conheçam o sentido da expressão, explico aqui a quem eventualmente não saiba o que significa requentar uma notícia, coisa muito comum nas redações e expediente geralmente usado com segundas intenções. Requentar significa na imprensa usar mais de uma vez uma pauta já concluída e publicada, dando-lhe nova abordagem sempre que possível ainda que correndo o risco muitas vezes de aumentar apenas o enfado do leitor. Alguns assuntos parecem inesgotáveis e lembram aquelas velas de bolo que teimam em acender quando já imaginávamos acabado o seu poder de luminescência.
Um desses assuntos voltou da cozinha recentemente e foi servido nas bancas pela revista Época, - hoje sob comando de Paulo Moreira Leite, jornalista responsável pela guinada à esquerda no grupo de colaboradores semanais da publicação dos Marinho.
Trata-se do Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, órgão criado ainda na ditadura varguista mas que obteve má fama nos anos 70 quando em suas delegacias eram interrogados, muitos sob tortura, os chamados "presos políticos", entre eles os terroristas marxistas em luta aberta contra o regime militar.
O motivo aparente para este fantasma voltar às páginas da grande imprensa foi que, entre os arquivos do Dops, - fartamente burilados há mais de dez anos, acham-se documentos e anotações a respeito de políticos como Lula, José Maria de Almeida e José Serra, candidatos hoje à presidência da República (no caso de Lula, pela quarta vez) pelo PT, PSTU e PSDB, respectivamente.
Tratando isso, o fato de eles estarem fichados no Dops, como novidade, a matéria, assinada por Neuza Sanches, brinca com os arquivos e tudo aquilo que supostamente hoje aparenta ser uma paranóia de um regime apavorado, que anotava tudo dos opositores sem qualquer critério lógico.
Para dar estofo à matéria, pasmem, são entrevistados o historiador José Murilo de Carvalho e ex-presos como o também historiador mas comunista de carteirinha, Jacob Gorender. Em comum, ambos têm o argumento de que é muito bom para um país ter entre candidatos à presidência pessoas com passado de luta pela democracia, como o ex-militante comunista José Maria, o ex-sindicalista pró-Cuba Lula e o ex-membro da Ação Popular e exilado, Zé Serra. O fato de terem sido espionados e fichados no Dops seria assim uma espécie de garantia aos eleitores de que os três têm a democracia nas veias.
Por tabela, pode-se deduzir o mesmo para todos os demais fichados, entre eles gente que recebeu treinamento em países comunistas, participava de assaltos a banco, seqüestro de diplomatas, execuções tanto de companheiros como de civis inocentes, tudo em nome da tal democracia que tanto admiravam e continuam a defender.
Acontece que há um problema que invalida o trabalho de Época e torna sua matéria requentada mais uma meia-verdade enfiada goela abaixo dos leitores. É o problema da omissão de fatos imprescindíveis para compreender a realidade de um momento histórico e que justamente dizem respeito aos candidatos e boa parte dos ex-fichados no Dops.
Quando Murilo de Carvalho e Gorender atestam o passado de luta pela democracia dos candidatos, eles simplesmente mentem. Dos candidatos-fichados, nenhum, pelos seus atos, pretendia ou ardorosamente ansiava em reinstalar a democracia no país.
Pois como é que pode alguém formado no ambiente comunista correr riscos de vida por ela? De que maneira os terroristas e seus simpatizantes marxistas podem ser garantia hoje de que, uma vez no poder, serão os maiores guardiães da democracia? Por que, - como diz Gorender, a presença de presidenciáveis no arquivo de um aparelho que combatia os inimigos do regime militar "demonstra a profundidade da derrota política da ditadura"?
Um dos fatos imprescindíveis que mencionei acima é que a ditadura não lutava contra democratas como quer fazer crer toda a reportagem de Época. O regime duelava contra terroristas marxistas e agitadores políticos comunistas, como o próprio Gorender, que tinham e têm muito mais ojeriza à democracia que os próprios militares um dia já tiveram. E esta guerra o regime venceu, seja no Araguaia ou nos Jardins em São Paulo. Goste-se dele ou não.
Por que, para Murilo de Carvalho, referindo-se às fichas dos atuais candidatos no Dops ".. é claro que temos uma geração em que a visão de democracia se encontra reforçada"? Será que o ex-exilado Serra, ex-membro da esquerdista Ação Popular e Lula, presidente de honra do partido que hoje é o principal interlocutor das FARC e apoiador do igualmente marxista MST, amavam tanto assim a democracia? Enfim, que geração de democratas é essa a que se refere o entrevistado de Neuza Sanches? E, afinal, que pertinência tem Gorender como fonte da matéria, já que, ele mesmo é um comunista convicto? Num país em que João Amazonas, - ex-desertor do Araguaia e ex-aluno de Mao, é tratado como grande batalhador das lutas democráticas, explica-se tudo.
A cozinha de Época não apenas requentou mais uma pauta surrada, a dos arquivos do Dops. Prejudicou-a tanto que só cabe aos seus leitores, agora, regorgitá-la.
"Nos porões", de novo.
A redação-cozinha da Época não foi a única recentemente a requentar o Dops. Os pauteiros do JN da TV Globo e da Istoé, por exemplo, aproveitaram a transformação do prédio da antiga sede do Dops em Museu do Imaginário do Povo Brasileiro (não se iludam, trata-se de mais uma pérola do revanchismo) para sentar o pau mais uma vez nos militares e delegados que dela fizeram uso. Para variar, "esqueceram" o outro lado da questão, ou seja, por que os terroristas marxistas que lutavam para instalar aqui uma ditadura pior da que havia eram ali interrogados.
Não podendo entrar aqui em maiores considerações por questões de espaço, o fato é que não li uma linha sequer que situasse o leitor a respeito das circunstâncias da luta contra o terror nas reportagens sobre o Dops. O que li sim foram os chavões de sempre, sem qualquer novidade. Quem apenas lê esta imprensa acha que José Genoíno e Carlos Marighella, citados na reportagem da Istoé, eram pobres coitados, uns ingênuos vitimados pelo poder militar. Que houve tortura no Dops, não me parece haver dúvida. Mas as razões, o momento que o país vivia e repito, as circunstâncias daquela época em que os terroristas assaltavam bancos, matavam e faziam explodir carros, nada disso é mostrado. A história precisa ser analisada sob os mais variados pontos de vista e não pode ser tratada simplesmente como uma luta entre bandidos (os militares torturadores) e mocinhos (os terroristas torturados). Será só preguiça ou ignorância mesmo? Não. É a história sendo reescrita pelos derrotados (ver a respeito meu artigo Jornalismo e Ignorância. www.angelfire.com/sc3/ricardobergamini/guidalli2.html. Mais nada.
* O autor é Jornalista. Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.