Revista Conjuntura Econômica – FGV - Vol 65 nº 11 NOVEMBRO 2011 - Carta do IBRE

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Nem todo projeto de infraestrutura deve usar recursos do Tesouro

 

Já não resta dúvida de que a indústria de transformação brasileira passa por um momento difícil. O nível de produção atual ainda não superou o atingido em 2008, logo antes da deflagração da fase mais aguda da grande crise global. São muitas as causas apontadas para o fenômeno: câmbio valorizado, competição chinesa, retraimento dos mercados ricos (que causa sobreoferta) e diversos entraves ligados ao chamado custo Brasil.

 

 

É nesse último item, porém, que a história se complica um pouco. É comum a afirmação de que uma das ações para aumentar a competitividade da indústria nacional que depende apenas do esforço e da capacidade de decisão dos brasileiros — ao contrário do câmbio, da China e da desaceleração nos EUA, Europa e Japão — é melhorar a infraestrutura do país. Afinal, com melhores estradas e portos, nossos produtos escoarão de forma mais eficiente e barata, tornando-se, consequentemente, mais competitivos.

 

É absolutamente certo que o Brasil deva melhorar a infraestrutura, mas, infelizmente, ao contrário do que muitos preconizam, isso pode não facilitar a vida da indústria de transformação. Tudo vai depender do tipo de investimento que será feito.

 

A razão é simples. As deficiências de transporte e logística têm um impacto negativo muito maior na competitividade das commodities do que na dos manufaturados. A participação do frete e dos custos portuários na exportação de soja, por exemplo, é muito maior proporcionalmente do que nas vendas externas de automóveis ou de calçados.

 

Em 2010, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), as despesas portuárias e de frete reduziam a receita líquida do exportador de soja em US$ 70, isto é, de US$ 412 por tonelada (preço FOB, free on board) para US$ 342. Em comparação, a perda nos Estados Unidos, graças aos subsídios, era de apenas US$ 2, para o mesmo preço FOB. Na Argentina, era de US$ 164, por causa da política das “retenciones”, que significa um imposto de exportação de 35%.

 

No que tange ao automóvel, o custo de transportar um carro brasileiro exportado para a Argentina é de R$ 875,64, segundo trabalho de Rachel Ballardin, Antonio Cezar Bornia e Rafael Tezza. Uma simples passada de olhos sobre a relação entre custo de transporte e preço da mercadoria sugere que, no caso brasileiro, a exportação de soja é significativamente mais onerada do que a de produtos manufaturados, como veículos.

 

Se houver ganhos de eficiência nas estradas e nos portos brasileiros, portanto, os preços dos bens primários no embarque cairão bem mais do que os dos manufaturados. Dessa forma, a vantagem das commodities se ampliará, suas exportações crescerão e o Brasil ficará ainda mais especializado em produtos da natureza. E uma das consequências desse processo será a continuação da valorização do câmbio, que tornará a situação competitiva dos manufaturados ainda mais problemática.

 

Um provável efeito da melhora das estradas e dos portos é o de desestimular a produção de óleo de soja e incentivar a exportação da leguminosa em grão. A lógica aqui é a mesma que afeta os efeitos diferenciados da maior eficiência da infraestrutura nos custos de matérias-primas e de produtos acabados, descrita acima. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, as más condições das estradas e os altos custos portuários são favoráveis à indústria de esmagamento de grão de soja no Brasil.

 

Assim, quando se fala na redução do custo Brasil como fator de aumento da competitividade da indústria de transformação, é necessário verificar se as melhorias planejadas afetam de forma positiva o setor manufatureiro especificamente.

 

No entanto, parece incontestável que melhores estradas e portos sejam uma prioridade nacional, e que trarão ganhos para a sociedade brasileira, independentemente do impacto na indústria de transformação. O que é necessário, portanto, é que a estratégia nacional de ampliação e aperfeiçoamento da infraestrutura leve em conta o custo e o benefício dos diversos projetos, no lugar de simplesmente se colocar recursos nos empreendimentos à medida que estes vão surgindo.

 

A opção de investir indiscriminadamente em infraestrutura com recursos públicos deveria ter um pressuposto: as melhoras proporcionadas por estes investimentos deveriam ocorrer de forma abrangente e igualitária entre todos os segmentos sociais e econômicos da vida nacional. Porém, como se viu em relação às manufaturas, aquela hipótese está equivocada. Os benefícios de novas e melhores estradas e portos se distribuem de forma bastante desigual entre diferentes atores sociais e econômicos (e também com forte componente regional, é claro).

 

Não é preciso nenhuma análise mais profunda para se perceber que a carteira brasileira de investimentos públicos em infraestrutura está bastante orientada para a exportação de produtos básicos, com muitos projetos concentrados nos eixos que vão das zonas produtoras de cereais no interior do país aos portos de escoamento, com escassa conexão entre si. Esse padrão, aliás, tem raízes históricas, como fica claro na rede de ferrovias associada ao ciclo do café.

 

Quando se analisa a exportação de produtos básicos, principais beneficiados pelos investimentos em infraestrutura viária e portuária, fica claro que, apesar das inúmeras vantagens que essa atividade traz para as empresas do setor e para o país em geral, há alguns efeitos colaterais indesejáveis. O mais conhecido deles é o câmbio valorizado, prejudicial à indústria.

 

Um problema adicional deriva do fato de o Brasil ser um formador de preços no mercado global de diversas commodities, dados os grandes volumes exportados pelo país. Dessa forma, as melhoras de infraestrutura que barateiam a soja e o minério de ferro acabam trazendo benefícios para o consumidor final, que são as empresas chinesas, por exemplo.

 

Esse efeito é mais uma indicação de que o investimento em infraestrutura deveria ser realizado a partir de uma estratégia que considerasse os diversos e complexos impactos na economia. Grandes corredores de exportação deveriam ser financiados por receitas derivadas dessa própria atividade econômica, e não deveriam contar com recursos do Tesouro Nacional. É interessante notar que foi assim que se procedeu no caso das ferrovias de escoamento durante o ciclo do café.

 

Como é do interesse dos importadores baratear o custo logístico das matérias-primas brasileiras, fica evidente que o escopo para o financiamento privado é muito amplo no caso dos corredores de exportação. A China, aliás, com sua gigantesca poupança excedente e a dependência de matérias-primas exportadas, não tem se acanhado em investir diretamente ou financiar investimentos em infraestrutura nos países fornecedores. Está claro que o dinheiro do Tesouro não fará falta para esse tipo de projeto.

 

A infraestrutura, entretanto, não se limita a estradas para escoamento de matérias-primas e instalações portuárias. A economia que se deveria fazer nesses projetos poderia ampliar os recursos, por exemplo, para as obras de saneamento e infraestrutura urbana em geral — estas sim, com impactos positivos amplos e bem disseminados entre a grande maioria da população brasileira.

 

Para os demais investimentos, o critério para utilização de recursos públicos seria o de que os projetos componham uma rede com ganhos que se espraiam entre diversos setores e atividades. Diante da necessidade de conter a expansão dos gastos públicos e o aumento da carga tributária, de um lado, e a de fazer do investimento público um indutor do crescimento, do outro, é preciso focalizar muito bem a carteira de empreendimentos do Estado.

 

Não há sentido em usar recursos do contribuinte para financiar investimentos de forte interesse privado, inclusive estrangeiro, e para os quais não faltará financiamento com uma boa engenharia financeira. É preciso, portanto, aprofundar e sofisticar a análise de custos e benefícios dos projetos de infraestrutura que demandam financiamento estatal.

 

 

Ricardo Bergamini
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