Pensões por morte precisam se adaptar aos novos tempos - Fonte - Revista Conjuntura Econômica - FGV

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 Vol 65 nº 09  Setembro  2011 - Carta do IBRE

 

O reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal, em maio deste ano, foi um marco na evolução das relações familiares no Brasil. Para quem conheceu o país de instituições moralistas e tradicionais de meados do século passado, ainda pautado em seus costumes e leis pela doutrina católica, a rapidez das mudanças nesse terreno deve parecer surpreendente. Hoje, o Brasil alinha-se em termos institucionais com os países mais avançados e liberais do mundo.

 

O reconhecimento da união homoafetiva coroa, de certa forma, uma série de mudanças legais, administrativas e de mentalidade que adaptaram as instituições brasileiras às novas realidades concretas da vida social no país. Não é preciso nenhuma investigação mais aprofundada para se perceber que a organização familiar mudou profundamente nas últimas décadas.

 

A estrutura patriarcal, com casamentos indissolúveis, deu lugar a uma grande diversidade de arranjos familiares. Hoje, são comuns lares de casais que já passaram por dois ou mais casamentos, e em que filhos não biológicos convivem com novos parceiros de um dos seus pais. Da mesma forma, muitas crianças são criadas por famílias monoparentais, e há também, é claro, os casais homoafetivos, às vezes até com filhos de uniões heterossexuais anteriores ou adotados.

 


Todo esse novo panorama social exige um grande ajuste institucional, e é auspicioso que este já venha ocorrendo, como fica claro na decisão do Supremo sobre as uniões homoafetivas. Mas esse é um processo que está longe de ser encerrado. Como é um pouco típico no Brasil, os avanços na concessão de direitos que atendam às novas configurações sociais correm na frente da revisão de benefícios e sistemas de seguro que já não fazem mais sentido.

 

Pensões — Um exemplo típico desse modelo nacional é o sistema de pensões por morte no país. Como se sabe, ele é de uma generosidade ímpar quando comparado à maior parte das nações. Na grande maioria dos países, a pensão por morte exige um período contributivo mínimo, e o mesmo se aplica em relação à duração do casamento ou da união. São bastante comuns também as restrições para pensionistas mais jovens, normalmente com menos de 45 anos.

 

Outra característica típica de sistemas de pensão por morte mundo afora é que haja uma redução do valor do benefício caso o(a) pensionista seja beneficiário(a) de outros programas previdenciários ou sociais, ou na hipótese de que trabalhe. E existem ainda as restrições à acumulação de aposentadoria e pensão. Finalmente, a pensão é descontinuada em caso de novo casamento.

 

No Brasil, não se registra nenhuma dessas limitações. Em nenhum caso o benefício se reduz, mesmo se o pensionista trabalhar ou for beneficiário de outros programas. Novos casamentos não eliminam a pensão, e não há quaisquer restrições a pensionistas jovens. A taxa de reposição no INSS (Previdência do setor privado) é sempre de 100% da renda do cônjuge falecido, independentemente do número de pensionistas e de outras rendas.

 

A consequência fiscal dessa liberalidade na concessão e cálculo dos benefícios da pensão por morte não é pequena. O Brasil gasta aproximadamente 3% do PIB nesse item, comparado com um número próximo a 1% para os países majoritariamente ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

 

Mas o problema das pensões por morte no Brasil não deve ser analisado puramente a partir dos seus aspectos contábeis. É preciso colocar a questão no âmbito mais amplo das relações sociais, do contexto histórico e da natureza dos benefícios previdenciários, que devem ter um caráter de seguro.

 

As pensões por morte dos militares remontam à Guerra do Paraguai. É fácil entender que, no contexto socioeconômico do século XIX, quando as mulheres não trabalhavam e a dependência da esposa em relação ao marido era enorme, a pensão era um seguro social indispensável. Para viúvas e filhos de soldados perecidos no conflito com o país vizinho, a morte do chefe de família poderia ser uma catástrofe econômica e social na ausência de um benefício pecuniário. Também é fácil perceber a origem da pensão para filhas (que se prolonga pela vida adulta): sem um dote ou algum tipo de renda, a mulher jovem teria grande dificuldade de casar-se e integrar uma unidade familiar autossustentável em uma sociedade patriarcal onde o trabalho feminino era raríssimo.

 

Na primeira metade do século XX, os esquemas previdenciários para a população civil começaram a se massificar no Brasil, com as chamadas “caixas” de categorias organizadas, como industriários, comerciários etc. Apenas nos anos 1960 haveria a unificação da Previdência civil brasileira.

 

Em termos de relações familiares, porém, não se avançara muito, na primeira metade do século passado, em relação ao final do século anterior. Assim, características do nosso atual sistema de pensão por morte, como a ausência de qualquer restrição quanto ao acúmulo de outros benefícios e rendas, ganham mais sentido quando se pensa na época em que surgiram. Na verdade, esses limites seriam precauções quase desnecessárias, considerando-se que não havia divórcio nem casamentos sucessivos, e a participação da mulher no mercado de trabalho (com a possibilidade de ganho de outras rendas) ainda era pequena.

 

O Brasil, porém, mudou. No ambiente socioeconômico contemporâneo, uma jovem viúva não terá nenhuma dificuldade maior para se recolocar no mercado de trabalho, caso dele tenha se ausentado em função do casamento. Da mesma forma, a filha de um militar falecido, ao contrário do que ocorria no século XIX, não sofrerá nenhum risco econômico maior do que o de qualquer outro brasileiro com as mesmas características socioeducacionais. Toda uma estrutura institucional que se justificava como seguro social, do final do século XIX à primeira metade do século XX, já não faz tanto sentido.

 

Indagação — Num momento em que o governo se dispõe a apertar a política fiscal para criar condições para uma convergência mais rápida dos juros em direção aos níveis internacionais, uma boa pergunta é por que não atacar justamente os gastos mais evidentemente excessivos e injustificados, que perderam a sua razão de ser histórica, como alguns dos benefícios concedidos no programa de pensões por morte.

 

Na verdade, esse tema entrou no radar da equipe econômica da presidente Dilma Rousseff, como noticiado recentemente na grande imprensa. Num segundo momento, porém, confrontado com a esperada oposição das centrais sindicais e a pouca simpatia da opinião pública por qualquer política de restrição de direitos sociais, o governo aparentemente decidiu deixar de lado a reforma das pensões. A alternativa foi centrar fogo na regulamentação da Previdência complementar para os servidores públicos.

 

É compreensível que o governo hesite antes de embarcar em uma reforma como a das pensões por morte. Como abordado anteriormente em diversas Cartas do IBRE, a extensão de direitos parece ter sido a tônica da política social de sucessivos governos desde a redemocratização. Boa parte dessas iniciativas é defensável, como no caso dos aumentos reais do salário mínimo e — mais ainda — da criação e da expansão do Bolsa Família.

 

Há, porém, mesclada com a legítima expansão do Estado de bem-estar social brasileiro, uma série de distorções que não têm nenhum impacto progressivo na distribuição de renda, nem se justificam como seguro social. Alguns dos benefícios concedidos nas pensões por morte são um dos exemplos mais claros desse tipo de situação. Ainda assim, não é difícil misturar os programas injustificáveis na arquitetura geral da expansão de direitos que marcou as últimas décadas da história brasileira — dessa forma, a parte espúria traveste-se do mesmo discurso de justiça social que embasa os demais benefícios. E o governo, por outro lado, encontra grande dificuldade em racionalizar a política previdenciária e social como um todo.

 

O desafio, portanto, é de comunicação com o público e de convencimento da sociedade. Uma possível linha de argumentação é justamente a de destacar a necessidade de continuamente adaptar as instituições brasileiras às mudanças que ocorrem na realidade do tecido social.

 

Um fato que deveria ser de mais amplo conhecimento público é a agilidade e a rapidez com que o nosso sistema previdenciário reconhece e incorpora as mudanças sociais e familiares. Assim, hoje, para efeito de aposentadorias e pensões, filhos naturais, relações estáveis fora do casamento (bigamia) e parceiros homoafetivos já estão contemplados no direito previdenciário. É importante notar que, no caso dos homossexuais, isso precede de mais de uma década a histórica decisão recente do Supremo.

 

Essa mesma celeridade que a Previdência exibe, justificadamente, para reconhecer as novas relações socioafetivas e familiares no Brasil também deveria se aplicar para a sustação de benefícios que já não fazem sentido na sociedade contemporânea. Assim, os governantes deveriam enfatizar junto ao grande público a necessidade de que a adaptação contínua das instituições seja feita de forma integral.

 

Para que se reconheçam novos direitos e necessidades, é fundamental também que se abra mão de benefícios cuja justificação como seguro social deixou de existir. Essa é uma mensagem relativamente simples e coerente, que o governo poderia usar na tentativa de remover os excessos obsoletos, caros e desnecessários do sistema de pensão por morte.

 

Ricardo Bergamini
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