Réquiem em vez de ação de graças

 

Jarbas Passarinho

      

 

 

Já estão quase todos mortos os que fizemos o 31 de Março de 1964. Dentre os poucos sobreviventes - entre os quais me incluo - há os que se batem contra a deformação da história. Batalha perdida, por enquanto, até que historiadores não escravos da ideologia possam ser fidedignos.

 

Há 2 mil anos, enquanto Cristo era a verdade, Pilatos perguntava o que era a verdade. Vivemos paradoxos no curso traiçoeiro da vida.

 

Aluno do último ano da Escola de Estado-Maior do Exército comandava-a o General Humberto de Alencar Castelo Branco. Tentava-se impedir a posse de Juscelino Kubitshek. Era o ano de 1955. Em preleção aos seus comandados, o general pregava o afastamento dos militares da política. Do contrário - dizia -, em vez de um exército teríamos milícias sob chefetes.

 

No livro O Governo Castelo Branco, de Luís Viana Filho, há a transcrição de uma carta que então escrevi ao meu comandante:

 

"Creio firmemente, como V. Exa., que o regime democrático - que juramos defender - deve ser mantido e defendido não importa a que preço. Sou como V. Exa. contra o golpe, militar ou civil, contra a ausência do regime representativo, contra a mutilação da democracia".

 

Já em 1963, porém, organizamo-nos para enfrentar, se necessário, um autogolpe da esquerda no poder. Dispúnhamos de informações seguras de que o presidente João Goulart, apoiado por Luís Carlos Prestes, preparava uma república sindicalista. O cunhado, dado às bravatas, discursava propondo o fechamento do Congresso para fazer a reforma agrária na marra.

 

Confirma, agora, a intenção de Jango a própria esquerda. Revela-o o respeitado marxista Jacob Gorender, no seu Combate nas Trevas, citando testemunho de antigos integrantes dos "grupos dos 11" de Leonel Brizola.

      

Certos de nos batermos pela preservação da Democracia, realmente ameaçada, sublevamo-nos em 1964, abortando o golpe da esquerda. O apoio maciço que nos deram a sociedade civil, a Igreja, a grande imprensa nacional e a burguesia amedrontada respaldam a nossa penosa decisão. Penosa, sim, porque o Exército tinha vocação legalista, e não golpista. Viramos golpistas quando estávamos fazendo uma contra-revolução.

 

Getúlio Vargas dera o autogolpe de 1937. A esquerda, não organizada, rendeu-se. Prestes foi preso. Sua companheira Olga, enviada para a morte pelos verdugos nazistas. O Partidão hibernou. Iria hibernar novamente e tudo indica que o autoritarismo teria breve existência. Mas Prestes enfrentou fortes dissidências, contrárias à desaprovação da luta armada, na qual via uma aventura funesta, dada a enorme desproporção da correlação de forças. Os dissidentes mobilizaram-se - felizmente para nós - em dezenas de organizações revolucionárias, em 1966, e desencadearam a luta armada a partir de 1967, especialmente em São Paulo.

 

Afora os comunistas, só um simulacro de guerrilha nacionalista, a de Caparaó, sob ordens de Leonel Brizola, derrotada sem um tiro sequer. A luta armada dos comunistas impediu a volta da Democracia plena, que os chefes militares propunham sinceramente restabelecer.

 

O erro, reconheceu-o Prestes. Disse, anos depois, que a aventura militar "só teve um resultado: o prolongamento, no tempo, do regime autoritário". Ao contrário da verdade, a duração do regime é citada como fruto da vocação ditatorial dos militares. Vencidos pelas armas, os comunistas hoje são todos heróis.

 

Sobreviventes foram readmitidos no serviço público, no mais alto posto da carreira interrompida. Os descendentes dos mortos foram providos com generosas indenizações e os que os combateram, muitos dos quais caíram sob as balas ou ações terroristas, anti-heróis, sem o menor amparo do Estado.

 

As Forças Armadas do período são "valhacoutos de bandidos", como as chamou então o bravo jornalista Márcio Moreira Alves, hoje persona grata nas casernas, com razão, porque os tempos mudaram e ele, também.

 

Tudo o que fizemos de bom, o saneamento da economia elevada à oitava posição no mundo, a reforma das comunicações, a malha das grandes rodovias, as hidrelétricas (entre elas a maior do mundo), a eliminação do drama nacional dos "excedentes" dos vestibulares, o aumento da oferta do ensino público primário, secundário e superior, a produção do aço como sexto produtor do mundo, a Previdência Social Rural nunca antes concedida aos homens e mulheres do campo (hoje referida pelo presidente FHC como "o maior programa de renda mínima do mundo"), tudo é negado.

 

Só nossos erros e excessos (infinitamente menores que nos países comunistas, que os nossos comunistas tanto louvaram) são incessantemente denunciados, ignorando-se a anistia recíproca.

      

Somos réprobos, na história reescrita pelos vencidos. Ou por jornalistas como Élio Gaspari, a quem o General Golbery entregou documentos secretos do Estado. O livro, baseado nesses documentos, passa a ser referencial histórico. E até revela que há vencedores arrependidos também.

      

Chego a pôr em dúvida a autenticidade da declaração, atribuída a Delfim Netto, de que a reunião dramática do AI-5 foi "teatro, pura encenação" e que "o discurso do Marcito não teve importância nenhuma".

    

A guerrilha de Marighella matava. Assaltava bancos e carros pagadores, detonava bomba matando sentinela do quartel do II Exército, em São Paulo, e atacava instalação militar. Antes, preso, fora solto por concessão de habeas-corpus.
        

Encenação? Pragmático, o meu ilustre colega de Ministério, ao que me lembre, discordou do texto do AI-5. Achou-o insuficiente, pois não ensejava mudanças constitucionais para proporcionar o desenvolvimento econômico.

        

Recolho, de vez, à vela ao barco da verdade. Em vez de ação de graças pela vitória, um réquiem pelos que tombaram. A serviço de uma encenação...

 

 

 

 

 

O autor é ex-governador, ex-senador, ex-ministro e atual presidente da Fundação Milton Campos. Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

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