Os vencidos, agora, querem reduzir o 31 de Março de 64 a um mero golpe de Estado
- Sáb, 27 de Agosto de 2011
- Seção:
- Categoria: 1964
É vulgar dizer que a História só deveria ser escrita depois que a poeira dos acontecimentos assentasse definitivamente. Em outras palavras, a História não é senão versão facciosa se escrita a serviço da paixão que ainda persista. Goncourt, escritor, e não historiador, escreveu que "a História é o romance do que se passou, enquanto o romance é a história do que poderia ter sido". O que venho lendo ultimamente no Brasil me faz lembrar, misturando-as, as duas concepções. A releitura de fatos mais ou menos recentes, feita de modo parcial e, o que é pior, narrada pelos vencidos, com toda a seqüela dos ressentimentos, se esforça para passar aos jovens a versão do que poderia ter sido, e não do que foi realmente.
Se se acreditasse nesses escribas que tratam do período dos anos 60, a conclusão seria inevitável. Os militares, fascistas por natureza, teriam derrubado um governo constitucional progressista, com o único fito de se apoderar do poder e nele se manter em benefício próprio, à custa de violências brutais contra os direitos humanos. Entretanto, quem compulsar os jornais de março de 1964 verá que a grande imprensa brasileira publicou editoriais, veementes, pregando a deposição de um governante que se entendia em marcha para um autogolpe, aliado à esquerda até então banida da vida legal.
Quem, já agora, tiver lido no arquivo da ex-URSS a declaração do embaixador soviético Fomim, no Brasil em 1964, verá confirmada a denúncia da imprensa, que chegou a abrir manchetes enormes de primeira página sob o título Basta! ou Fora! Era a classe média que falava pelos jornais. A mesma que, mulheres à frente, realizou as Marchas com Deus e pela Liberdade, com impressionante massa popular nas ruas de São Paulo e outros Estados. As Forças Armadas, tipicamente oriundas da classe média, foram impelidas à rebelião, e tão pouco à vontade para dar o golpe de Estado que o chefe do Estado-Maior do Exército, general Castelo Branco, que fora sempre um legalista, em face da intranqüilidade que tomara conta da Nação, somente em 20 de março distribuiu uma circular aos subordinados. Após relembrar a escalada revolucionária das agitações, a pregação do fechamento do Congresso e convocação de uma Constituinte, escreveu: "A ambicionada Constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura." Por isso, chamo o 31 de Março de 1964 de contra-revolução. Os vencidos, reescrevendo-a agora, querem reduzi- la a um simples golpe de Estado no estilo dos Mobutus da vida. O nosso erro foi ter durado mais do que o devido, ao darmos importância estratégica exagerada à inexpressiva guerrilha rural do Araguaia. Tinha razão Prestes quando se opôs à luta armada. Sabia-a fadada ao fracasso. Coincidiu com ele Skidmore. Ambos disseram que a aventura da esquerda armada só teria um resultado prático: fazer durar o regime autoritário.
Não fica aí a revisão. Meus netos aprendem, de professores marxistas, que o Brasil, a serviço do imperialismo inglês, invadiu o Paraguai, esmagando o país mais progressista da América do Sul de então. Ora, o Império tinha 15 mil homens mal armados do Pará ao Rio Grande do Sul. Solano López mobilizara 64 mil, bem armados e dispondo da artilharia mais poderosa. Tomou a iniciativa. Apresou o navio em que viajava o presidente da Província de Mato Grosso e o aprisionou. Invadiu a província, derrotando nossas fracas forças de fronteira, ocupando parte do território mato-grossense durante três anos, sem que pudéssemos retomar Corumbá. Violou o território da Argentina, até então neutra, e chegou a conquistar Uruguaiana. Sustentou uma guerra terrível por seis anos. Mas, para os facciosos professores de meus netos, fomos nós os imperialistas, a mando dos patrões ingleses... Mestres que, violentando a verdade, induzem nossos jovens a rejeitar o nosso orgulho de país pacífico, que em todas as ações de guerra em que se envolveu o fez em defesa de seu território ou dos postulados libertários, como nas duas Grandes Guerras, ao lado dos aliados, sucessivamente contra os exércitos do kaiser e os nazistas de Hitler.
Como se fora pouco, ressuscita-se o drama de Canudos, analisando-o fora da moldura do seu tempo, dos hábitos que vinham das lutas nas coxilhas gaúchas quanto ao tratamento dado a prisioneiros e da insegurança de uma República ainda não consolidada. Não há como negar a influência nociva dos governantes baianos de então e seus interesses menores, mas é o Exército que se pinta como o verdugo cruel, o assassino de ontem, para, talvez, respingar a injúria no presente.
Jarbas Passarinho
*Texto enviado por colaboração de nosso irmão de luta, Médico Carlos Alberto Cunha do Nascimento.